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Os gatilhos de Jair Bolsonaro atingem o coração dos direitos sociais

Fonte: Carta Capital.

As medidas do presidente aniquilam o sistema de proteção

Caricatura: Carta Capital / Reprodução.

Só a desinformação explica o curso fácil das medidas antissociais que Bolsonaro está incluindo em nosso ordenamento jurídico, invertendo e pervertendo as prioridades constitucionais e atacando frontalmente as conquistas sociais que foram inscritas na Constituição de 1988. A reforma da Previdência, por enquanto, é o ápice da desconstrução do pacto sob o qual fundamos a nossa jovem democracia. O novo ataque proposto pelas Emendas Constitucionais 186, dita emergencial, e a 188, que altera o pacto federativo, será, no entanto, devastador.

A PEC 188 altera o próprio espírito da Constituição Cidadã, presente no seu artigo 6º, no qual estão definidos os direitos garantidos aos brasileiros como educação, saúde, alimentação, trabalho e Previdência Social, entre outros. A esse artigo é acrescentado um parágrafo único: “Será observado, na promoção dos direitos sociais, o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”, criando uma contradição absurda com o caput do art. 6º, pois não pode o Estado estabelecer condicionantes aos direitos, à vida e à liberdade. Subverteu-se o conceito jurídico ao dotar de direitos um ser incorpóreo, “o Estado”, que adquire subjetividade pela vontade espúria do legislador, nesse caso, o Poder Executivo.

O resultado desse contrassenso é simples: não haverá futuras gerações se adotarmos o pressuposto de que direitos e proteções sociais podem ser sacrificados no presente em nome da garantia, a longo prazo, de recursos para o pagamento da dívida pública.

A universalização da saúde e da educação, que tem papel crítico na garantia dos direitos coletivos e na promoção dos direitos humanos, foi uma das mais importantes conquistas da Constituição. Foram criados mecanismos que deram estabilidade ao financiamento dessas políticas, vinculando a elas parcelas de impostos federais, estaduais e municipais. Esse modelo de financiamento, fragilizado pela desvinculação de receitas da União e pelo chamado Teto de Gastos, será profundamente limitado pelos gatilhos da PEC 186.

A primeira ameaça a esse financiamento ocorreu em 1994, quando foi criado o Fundo Social de Emergência, que implicou o aumento dos recursos de livre alocação pelo governo federal. Estipulou-se que 20% das receitas da União ficariam desvinculadas das destinações fixadas na Constituição.

Inicialmente previsto para durar seis anos, o fundo foi prorrogado com alterações em sua designação. Mudou para Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e, nos exercícios de 1996, 2000, 2003, 2007 e 2011, passou a se chamar Desvinculação de Receitas da União (DRU). A partir de 2011, a DRU deixou de afetar as vinculações para Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), mas, em 2016, foi prorrogada até 2023 e o porcentual de desvinculação aumentou para 30%. Na prática, a DRU reduz os recursos destinados à educação, saúde e todas as demais políticas de seguridade social.

No caso da seguridade, mais riscos estão embutidos na PEC 186, disfarçados de “gatilhos” acionados no exercício em que não se cumprir a “regra de ouro”, implícita a esse conceito está a ideia de que o financiamento da saúde, educação e assistência não são importantes para as gerações seguintes. Portanto, sempre que os recursos de operação de crédito forem superiores às despesas de capital, nos dois anos subsequentes o excesso de arrecadação e o superávit financeiro da seguridade poderão ser usados para amortizar a dívida da União. Quebra-se de vez a vinculação das contribuições sociais ao financiamento da seguridade social.

As medidas vão aniquilar o sistema de proteção, levando ao subfinanciamento e à insustentabilidade das políticas de seguridade e educação

A ampliação dos mecanismos de compressão de gastos sociais não dialoga com a realidade. Segundo a Frente Nacional de Pre-feitos, nas despesas com saúde, no ano de 2017, a União aplicou 6 bilhões de reais acima do mínimo e os estados, 8,3 bilhões, enquanto os municípios aplicaram 31,4 bilhões de reais. É uma equação insana. Assim, a desobrigação da União e dos estados com esses gastos vai recair sobre os municípios, esfera que tem a menor capacidade tributária, com graves consequências para os serviços de atenção básica à saúde.

Dados de 2018 indicam que na educação não é diferente. Em 93% dos municípios, o investimento é superior ao mínimo constitucional. Foi a fixação de patamares mínimos de investimento em educação na Constituição que levou municípios, estados e a União a alcançarem o patamar atual de investimentos em torno de 5% do PIB. Mesmo assim, o Brasil não atinge a metade do investimento médio anual por aluno praticado pela OCDE, de 11 mil dólares. Com a compressão perversa e irresponsável de gastos não chegaremos aos desejados 10% do PIB propostos no Plano Nacional de Educação, que nos possibilitaria atingir um padrão mínimo de qualidade educacional recomendado internacionalmente.

PRESIDENTE JAIR BOLSONARO. FOTO: EVARISTO SA / AFP

Principalmente na educação, os gastos com pessoal e inativos são itens muito importantes da despesa total do setor. A PEC 186 traz maiores restrições a estas despesas, pois a elas são ainda acrescidas as pensões para compor o total das despesas limitadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

As despesas primárias, que representam os serviços públicos prestados à população, inclusive educação e saúde, tiveram seu crescimento anual limitado à correção do IPCA pela emenda do Teto de Gastos e serão ainda mais reduzidas pela PEC do Gatilho de Bolsonaro, ficando sem correção pela inflação.

Como alternativa à vinculação de recursos para essas políticas intentada pelo atual governo, formulou-se a proposta de unificar os recursos da saúde e da educação. Os autores supõem que prefeitos e governadores teriam ampla liberdade para aplicar entre um e outro item, desvinculados de qualquer regra além da consciência e do discernimento, e sem qualquer freio de segurança social. Ledo engano. Ficarão com uma “escolha de Sofia” entre áreas vitais, demandadas por uma população cada vez mais empobrecida, desempregada e carente.

A desconstrução do financiamento das políticas públicas fere de morte o pacto social. As medidas vão aniquilar o sistema de proteção social, levando ao subfinanciamento e à insustentabilidade das políticas de seguridade e educação, com o objetivo de favorecer o rentismo a partir de superávits que permitam ampliar o pagamento dos encargos da dívida em um país no qual bancos batem recordes de lucratividade. Flexibiliza-se a garantia dos direitos a uma população onde se agigantam as desigualdades sociais e o desemprego, e onde mais de 52 milhões de compatriotas vivem com menos de 420 reais por mês.