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As perdas além dos números dos povos tradicionais

Fonte: Jornal da Ciência 

Sem apoio do Estado, indígenas e quilombolas se organizam para conter o avanço da covid-19. Perda de vidas, especialmente dos idosos, torna a situação ainda mais dramática para estas comunidades, mostra reportagem especial da nova edição do Jornal da Ciência impresso

O sentido de coletividade é o que tem amparado os povos tradicionais na pandemia do coronavírus. Indígenas e quilombolas criaram uma rede de solidariedade com a ajuda de universidades e organizações não governamentais, dentro e fora do Brasil, para enfrentar a doença diante da ausência do Estado, que não apenas se omite, mas em muitos casos apoia ataques.

O mesmo senso do coletivo, por outro lado, torna ainda mais pesadas as perdas com a doença. Lideranças como o kayapó Paulinho Payakan, o tuyuka Higino Pimentel Tenório, ou Dionito José de Souza Macuxi, da Raposa Serra do Sol, levados pelo coronavírus, privaram as comunidades de sabedoria, orientação, apoio psicológico e emocional amplamente valorizados. E também de sua história, mantida e transmitida oralmente através das gerações.

“Perdemos uma referência”, comentou Célia Nunes Correa, conhecida como Célia Xakriabá, sobre a morte de Payakan. No penúltimo fim de semana de junho, a covid-19 levou o cacique Mario Puyanawa, patriarca da aldeia Puyanawa, que fica em Mâncio Lima, no Acre. Mário Cordeiro de Lima Puyanawa tinha 77 anos e foi o primeiro indígena a se tornar cacique depois do contato com os brancos. Em entrevista ao G1, o filho José Ferreira Puyanawa disse que o pai sempre foi sinônimo de luta, honestidade e força para o povo indígena. “Meu pai deixa essa marca, esse legado pela luta, demarcação das nossas terras, tudo com êxito”, relembra.

Entre os quilombolas, as perdas são igualmente arrasadoras. Eles se despediram da Tia Uia, matriarca do Quilombo da Rasa, na Região dos Lagos do Rio de Janeiro; seu Ulisses, do Território Quilombola do 2º Distrito, em Mocanjuba, no Pará, referência para sete comunidades locais; Raimundo Nascimento dos Santos e Flausina de Jesus Pinto, de Santarém (PA).

“Os mais velhos que estão partindo levam com eles nossa história, nossa vivência, as crianças não vão lembrar deles”, comentou Sandra Maria de Andrade, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais e Quilombolas (Conaq).

Reconhecimento

Os povos tradicionais brasileiros sempre suportaram o peso do preconceito e da desigualdade social que se abate sobre os brasileiros mais vulneráveis. Porém a covid-19 expôs outros obstáculos, até então invisíveis à sociedade. Um deles é a falta de reconhecimento mesmo em relação aos registros oficiais, explica o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, conselheiro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e coordenador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA).

Segundo Almeida, só no perímetro urbano de Manaus (AM), organizações como a Nova Cartografia, a Pastoral Indígena e a Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime) catalogaram 25 aldeias onde vive uma população estimada em pelo menos 30 mil indígenas. Porém, a Fundação  Nacional do Índio (Funai) não reconhece e não concede o Rani, o RG indígena, para essa população. Ou seja, aqueles destas comunidades que pegaram coronavírus, se curaram ou morreram, não entraram para os registros oficiais como indígenas.

“Isso leva a uma subnotificação muito elevada, porque não dizem que morreu um indígena, dizem que morreu um cidadão de Manaus”, diz o antropólogo. O objetivo do PNCSA é apoiar a auto cartografia dos povos e comunidades tradicionais na Amazônia. As informações coletadas em pesquisas ajudam a aumentar o conhecimento sobre o processo de ocupação dessa região, fortalecendo os movimentos sociais já existentes.

Diante do quadro de calamidade produzido pelo coronavírus, o PNCSA decidiu utilizar suas redes de contatos para apoiar iniciativas dos próprios indígenas para suprir suas necessidades de recursos. No dia 14 de maio, o projeto distribuiu, em parceria com o Museu da Amazônia (MUSA), 50 cestas básicas recebidas da Ação Social da Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania (Sejusc) às comunidades da Aldeia Yupirungá, Associação dos Índios Kokama (Akim) e à Associação Comunidade Wotchimaücü (Tikunas).

“Nós já temos a rede de relações sociais e, identificando as necessidades, começamos a acompanhar. Por exemplo, fortalecendo as vaquinhas virtuais, rifas beneficentes, conseguindo com as costureiras das escolas de samba a produção de máscaras por quatro reais”, disse Almeida. Ele destacou que essa é uma ajuda complementar: “É uma forma de solidariedade para cumprir o que o Estado deveria estar fazendo.”

Números

Até o fechamento desta edição, os dados da Articulação dos Povos Indígenas (Apib) e da iniciativa Brasil em Dados Libertos (Brasil.io), consolidados na plataforma do Instituto Socioambiental (ISA), registravam 11.385 casos confirmados, 426 óbitos em 122 povos afetados. Entre os quilombolas, até o dia 3 de julho havia 1.206 casos confirmados, 197 em monitoramento e 126 óbitos em todo o Brasil, sendo 36 no Rio de Janeiro, estado com maior número de mortos seguido do Pará, com 34. Os dados foram levantados pelas Federações, Coordenações e Associações de quilombolas nos Estados, em parceria com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais e Quilombolas (Conaq) e divulgados pela Agência Alma Preta de Jornalismo.

A exemplo do que se constata no restante do País, todos estes números estão subestimados pela falta de testes e problemas com as notificações. Tanto a Apib quanto a Conaq se apoiam em dados do Ministério da Saúde (MS) e das secretarias estaduais e municipais, mas para se aproximar mais da realidade, levantam informações também junto às suas redes de contatos nas comunidades.

Como a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), ligada ao MS, registra exclusivamente os casos de indígenas aldeados, o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígenas monitora os casos fora das terras indígenas. Outros levantamentos são realizados Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e pela Fundação Getulio Vargas (FGV), este apontando, até o início de junho, que um terço dos indígenas residem em municípios com alto risco para epidemia de covid-19.

Quilombolas

“Estamos perdendo um quilombola por dia desde que começamos a fazer o monitoramento por conta própria (em maio) ”, relata Sandra Maria de Andrade, da Conaq.

Segundo ela, as comunidades quilombolas estão passando todo tipo de necessidades por não estarem preparadas para a pandemia. Sem apoio do Estado, eles têm contado com organizações não governamentais parceiras, como UniAfro, UISA, Fundo Brasil de Direitos Humanos, Terra de Direitos, entre outras. Elas fornecem kits emergenciais, enquanto a Conaq promove arrecadação de recursos por “vaquinhas” online para suprir as comunidades com cestas básicas e outros itens de primeira necessidade.

Um problema mais imediato é a falta de alimentação, água para higienização e irrigação da agricultura, destaca o antropólogo Oswaldo Martins de Oliveira, coordenador do programa de extensão “Africanidades: Identidades, Religiosidades e Patrimônio Cultural” do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). “A situação tende a ficar mais complicada se não houver emprego e eles não puderem vender sua produção”, afirmou.

Monitoramento

Os indígenas têm conquistado importantes apoios dentro e fora do País. Em maio, a famosa ativista ambiental sueca, Greta Thunberg, gravou um vídeo pedindo apoio para protegê-los. Outro vídeo, gravado por Beka Munduruku, uma indígena de 16 anos, pedindo ajuda, foi assistido e compartilhado pela ONU e pelo Vaticano. “O movimento indígena tem um grande capital político, construído desde os anos 1970”, comentou o antropólogo Tiago Moreira, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA).

Mas a luta é dura. O povo Xakriabá, que vive na Terra Indígena (TI) da margem esquerda do rio São Francisco, no norte de Minas Gerais, viu a contaminação pela covid-19 aumentar com a circulação de seus habitantes em direção ao município de São João das Missões e outras seis cidades que fazem divisa com a TI para vender produtos e receber o auxílio do governo federal. Com 12 mil habitantes, a TI tem nove entradas e a única forma de controlar a disseminação do coronavírus era rastrear o fluxo de pessoas, explicou Ana Maria Gomes, professora de Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Gomes é uma das coordenadoras de uma equipe de acadêmicos que está auxiliando os indígenas no controle e monitoramento.

“Como todos sabemos, não existe uma política pública no Brasil de testagem em massa de caráter preventivo, especialmente em relação aos povos indígenas”, disse Gomes. As ações da Sesai ficam muito abaixo das necessidades e resta às comunidades as intervenções não farmacológicas (NPI), ou seja, essas ações de prevenção e acompanhamento da contaminação por meio de distanciamento social, higienização e monitoramento do fluxo de pessoas que possam conduzir a algum controle possível.

Além de Gomes, a equipe tem como coordenadores Roberto Luís Monte-Mor e Marden Campos na UFMG, Ana Cláudia Cardoso, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e Philipp Horn na Univ. Sheffield (UK). A equipe de trabalho na Terra Indígena Xakriabá é coordenada pelo enfermeiro Xakriabá Marciel Silva e toda a proposta foi montada em acordo e diálogo constante com o cacique Domingos Xakriaba.

Uma equipe da UFMG, que já estava trabalhando dentro da TI com um projeto de desenvolvimento econômico, reverteu os esforços para o combate à pandemia. Segundo Célia Xakriabá, que faz parte da equipe, o trabalho envolve 200 indígenas que auxiliam no controle das entradas e nos registros de passagem que são lançados em uma planilha para elaboração dos boletins de monitoramento. Ativista, Célia Correa fez o mestrado em educação na Universidade de Brasília, é a primeira mestra de sua comunidade e agora está cursando o doutorado em Antropologia na UFMG.

“O desafio é muito grande, não é fácil ficar nas barreiras de monitoramento, e ainda com a preocupação com autonomia e segurança alimentar”, comentou. Para ela, é muito importante a sensibilidade coletiva porque, nesse momento, os indígenas são o alvo, mas também podem ser o caminho para a cura desta e das próximas pandemias.

“Eu costumo dizer que o que vai curar a humanidade nesse momento não é só o princípio ativo que está sendo pesquisado em laboratórios, mas nossa capacidade de reativar o princípio de humanidade, não somente pensando na imunidade corporal, mas também na imunidade espiritual”, concluiu.

Janes Rocha

Confira a nova edição do Jornal da Ciência impresso – “SBPC se manifesta em favor da Ciência e da Vida”. O PDF da publicação está disponível gratuitamente neste link.