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Artigo | Ações de Bolsonaro corroem a democracia

Fonte: ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.

Por Antonio Moreira Maués*

Imagem: Reprodução.

O primeiro ano do Governo Bolsonaro apresentou resultados pífios na economia e foi marcado por um alto grau de instabilidade política. Embora tenha conseguido aprovar a reforma da previdência, Bolsonaro não dispõe de uma base parlamentar estável no Congresso Nacional e ainda perdeu parte significativa de sua popularidade, tornando-se o Presidente da República com pior avaliação nos doze primeiros meses de governo desde a redemocratização[1]. Bolsonaro demonstra ter limitações intelectuais para gerir os destinos do país e busca se equilibrar no apoio que ainda possui no empresariado e entre seus eleitores mais fiéis.

Apesar dessas debilidades, Bolsonaro provou, em seu primeiro ano de mandato, que pode infligir sérios danos à democracia. Além dos efeitos de sua política econômica sobre o aumento da pobreza e da desigualdade, várias outras ações do governo vêm atingindo instituições indispensáveis para o funcionamento do regime democrático. Nos últimos anos, diversos estudos têm demonstrado que regimes autoritários podem resultar de um processo contínuo de corrosão dos pilares da democracia, e não de golpes militares ou da adoção de estados de exceção. Nesses casos de “erosão democrática”[2], governantes eleitos utilizam-se das vias legais para, paulatinamente, por fim ao regime democrático. Dentre os instrumentos de que um líder autoritário dispõe para realizar seus objetivos, encontram-se o controle da administração pública, a fim de impedir que seus órgãos coloquem freios às ações arbitrárias do chefe do executivo, e a imposição de limites ao debate público, buscando reduzir os espaços de crítica ao governo. Em ambos os casos, Bolsonaro tem oferecido fartos exemplos de seu intento de enfraquecer a democracia.

Controlando a administração pública

Ao iniciar seu governo, Bolsonaro promoveu uma ampla reorganização do Poder Executivo, que levou à extinção de vários Ministérios, dentre os quais as pastas do Trabalho e da Cultura. Mais do que uma reforma guiada por uma concepção de Estado mínimo, essa medida já mostrava sua intenção de enfraquecer os setores da administração vinculados às políticas públicas contrárias à agenda autoritária do governo. Dessa forma, a Presidência da República teria mais condições de ampliar seu controle sobre a administração federal e conduzi-la a um alinhamento com seus interesses.

Uma primeira manifestação desse controle autoritário incide sobre as funções regulatórias e fiscalizadoras da administração pública, de modo a favorecer os setores que apoiam o governo. Nesse campo, Bolsonaro tem privilegiado os interesses das bancadas que o sustentam no Congresso Nacional, como a bancada ruralista, a bancada evangélica e a bancada armamentista, mesmo que o atendimento de suas demandas contrarie a lei.

A proteção do meio ambiente tem sido uma das áreas mais prejudicadas pelo atual governo. Até novembro de 2019, o Ministério da Agricultura autorizou o registro de 439 novos produtos agrotóxicos[3], mantendo a trajetória de crescimento que vinha do ano anterior. Essas liberações foram facilitadas por um conjunto de mudanças nos critérios de avaliação e classificação toxicológica adotados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Em documento entregue ao Relator Especial da ONU em direitos humanos e resíduos tóxicos, Baskut Tuncak, que visitou o Brasil em dezembro, a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida alertou que quase a metade desses produtos são classificados como extremamente ou altamente tóxicos para a saúde humana[4]. Ao término de sua visita, o Relator da ONU manifestou sua preocupação com a situação do país[5].

Também na área ambiental, uma série de medidas levou ao enfraquecimento do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). O próprio Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, critica rotineiramente as ações de fiscalização do Ministério e, em algumas oportunidades, atuou de maneira direta para inviabilizá-las[6]. O Ministro também promoveu a troca de comando em quase todas as Superintendências Regionais do IBAMA e buscou restringir o funcionamento do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), além de dificultar o recebimento de recursos internacionais por meio do Fundo Amazônia[7]. A somatória dessas ações fez com que o número de autuações ambientais feitas pelo IBAMA em 2019 atingisse seu menor número desde 2000[8], embora não haja nenhum dado que indique melhorias na proteção ambiental no Brasil e o número de queimadas tenha aumentado no país[9].

Outras consequências negativas dessas políticas atingem os povos indígenas. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) tem diminuído suas atividades e ignorado várias recomendações feitas pelo Ministério Público Federal[10]. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 21 terras indígenas com presença de povos isolados encontram-se atualmente invadidas, o que demonstra a omissão deliberada do governo[11]. A gravidade da situação fez com que a Comissão Arns e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos denunciassem Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional por incitação ao genocídio e por promover ataques sistemáticos contra os povos indígenas[12].

Na área de segurança pública, além de declarações e iniciativas que favorecem o aumento da violência policial[13], Bolsonaro tem buscado ampliar o mercado de armas de fogo no país. Em maio, o Presidente editou um decreto que facilitava o porte e a posse de armas, bem como a aquisição de munição e armamento. Esse decreto gerou reações negativas do Congresso Nacional e do Ministério Público Federal, que ingressou com uma ação judicial para suspendê-lo[14]. Obrigado a recuar, Bolsonaro editou vários outros atos que seguiam o mesmo objetivo de contornar os limites estabelecidos pelo Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003)[15]. Atualmente, encontram-se em vigor três decretos sobre a matéria, pendentes de julgamento sobre sua constitucionalidade no STF, com parecer desfavorável da Procuradoria-Geral da República.

Mesmo no campo dos direitos humanos o atual governo tem atacado políticas que vêm sendo adotadas há décadas. Além de determinar que o Golpe de 1964 voltasse a ser comemorado nas unidades militares[16], Bolsonaro patrocinou mudanças na Comissão de Anistia, para a qual foram nomeados 27 novos integrantes, dentre os quais pessoas com atuação contrária à concessão de reparações às vítimas da ditadura militar e à instauração da Comissão Nacional da Verdade. A Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos (PFDC) recomendou ao Ministério dos Direitos Humanos que revogasse a nomeação desses novos conselheiros a fim de assegurar a imparcialidade e a independência da Comissão[17].

O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) também foi alvo de ataques do governo. Em junho, por meio do Decreto nº 9.831, Bolsonaro exonerou todos os membros do MNPCT e determinou que o trabalho no órgão deixasse de ser remunerado. Respondendo a ação do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União, a justiça determinou, em medida liminar, que seus membros fossem reintegrados[18] e, em dezembro, o Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura declarou que a nova regulamentação enfraquece a prevenção da tortura no Brasil e recomendou sua revogação[19].

Ainda no campo dos direitos humanos, observa-se o enfraquecimento das políticas públicas voltadas para as mulheres[20] e para as questões de gênero[21], em favor de pautas de inspiração religiosa que comprometem o caráter laico do Estado brasileiro[22]. O conjunto de ações do governo contrárias aos direitos humanos levou a que diversas entidades do Brasil e do exterior se manifestassem contrárias à candidatura do país ao Conselho de Direitos Humanos da ONU[23].

Outra forma de controle da administração pública pelo atual governo consiste em dificultar a produção de estudos ou informações que não correspondam a seus interesses. Três casos são representativos dessa interferência:

a) em julho de 2019, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) divulgou os dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (DETER), indicando um aumento significativo do desmatamento na Amazônia[24]. Poucos dias após, Bolsonaro disse em uma entrevista: “tenho a convicção que os dados são mentirosos. Até mandei ver quem é o cara que está à frente do Inpe para vir se explicar aqui em Brasília, explicar esses dados aí que passaram na imprensa. (…) Até parece que ele está a serviço de alguma ONG, que é muito comum”[25]. O Diretor do INPE, Ricardo Galvão, reagiu às críticas defendendo a qualidade do trabalho feito pela agência – que conta com reconhecimento internacional – e foi demitido por ordem do Presidente da República;

b) durante sua campanha eleitoral, Bolsonaro afirmou que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) havia sido utilizado politicamente nos Governos Lula e Dilma, acarretando prejuízos financeiros para o Brasil. Em junho, contrariado pelo fato de que o BNDES não havia apresentado os dados que comprovassem suas afirmações, Bolsonaro forçou a demissão de seu Presidente, Joaquim Levy, apesar de sua reconhecida capacidade técnica[26];

c) Bolsonaro e seu Ministro da Educação, Abraham Weintraub, têm proferido vários ataques às universidades públicas, acusadas de promoverem balbúrdia[27], serem ineficientes[28] e até mesmo de acobertarem a prática de crimes em suas instalações[29]. Na busca de ampliar o controle do governo sobre essas instituições, o Presidente da República tem se utilizado de seu poder de nomear os reitores das universidades federais, que são escolhidos com base em lista tríplice eleita pela comunidade acadêmica. Até agosto de 2019, Bolsonaro havia nomeado doze novos reitores e, em seis ocasiões, o escolhido não foi o candidato mais votado da lista tríplice, o que interrompeu uma prática de respeito à autonomia universitária que havia sido estabelecida pelos governos anteriores[30]. O perfil ideológico dos candidatos aparece como o fator decisivo nas escolhas feitas pelo governo[31]. Além disso, o governo tem buscado restringir a liberdade de expressão nas universidades públicas[32].

Mesmo os órgãos responsáveis pela fiscalização do governo não escaparam da interferência de Bolsonaro. O novo Procurador-Geral da República foi escolhido sem levar em consideração a lista tríplice elaborada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), ao contrário da prática que vinha sendo adotada desde o Governo Lula. Embora seja discutível a vinculação do Presidente da República a essa eleição corporativa, a decisão de Bolsonaro foi justificada com argumentos de caráter político. Em mais de uma ocasião, o Presidente afirmou que precisava de um Procurador-Geral que limitasse as ações do Ministério Público contra seu governo e estivesse alinhado com sua ideologia[33]. O novo Procurador-Geral não poderia ter um perfil ativista, nem tratar a questão ambiental com “radicalismo” ou defender as “minorias”[34]. O escolhido por Bolsonaro, Augusto Aras, não tardou a demonstrar seu alinhamento ao nomear, como Secretário dos Direitos Humanos do Ministério Público Federal, um Procurador conhecido por suas críticas aos direitos das minorias e ao exercício da liberdade de expressão nas instituições de ensino[35].

Tampouco a Polícia Federal esteve protegida das ações de Bolsonaro, que forçou a troca do superintendente do órgão no Rio de Janeiro e disse que faria qualquer outra mudança que julgasse conveniente[36]. É possível que o apoio incondicional do Ministro Sérgio Moro ao Presidente tenha tornado desnecessárias outras intervenções na Polícia Federal[37].

Limitando o debate público

Bolsonaro manteve, no exercício da Presidência, o mesmo discurso violento contra seus adversários e qualquer outro grupo, inclusive a imprensa, que se oponha às suas medidas. Ao assumir o poder, ele passou a dispor de meios para amplificar esses ataques e impor limites ao debate público.

Bolsonaro tem feito questão de anunciar pessoalmente suas ações contra órgãos de imprensa. Ao editar a Medida Provisória nº 892, que dispensava as sociedades anônimas de publicar balanços e outros documentos em jornais de grande circulação, o Presidente ironizou o impacto que a perda desse faturamento teria sobre alguns meios[38]. Essa MP acabou sendo suspensa liminarmente pelo STF e, após ter sido rejeitada pela Comissão Mista do Congresso Nacional, perdeu sua validade.

O governo também tem retaliado diretamente alguns meios de comunicação. No caso da Folha de S. Paulo, após sucessivas declarações contra o jornal, a quem chegou a acusar de “panfleto ordinário” e “esgoto”, Bolsonaro anunciou que todas as assinaturas da Folha no governo federal seriam canceladas e ainda fez ameaças veladas aos anunciantes do jornal[39]. Em seguida, a Folha de S. Paulo foi excluída da licitação feita pela Presidência da República para acesso digital ao noticiário da imprensa, mas as reações da Associação Brasileira de Imprensa e do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas obrigaram o governo a recuar[40].

Em mais um episódio ilustrativo, Bolsonaro fez uma transmissão ao vivo em sua página no Facebook para criticar reportagem da TV Globo sobre o possível contato de um dos acusados do assassinato da Vereadora Marielle Franco com ele. Aos berros e em meio a vários impropérios, o Presidente insinuou que poderia não renovar a concessão da emissora[41].

O outro lado desses ataques a determinados meios de comunicação são os benefícios concedidos pelo governo aos meios que o apoiam. Segundo relatório do Tribunal de Contas da União, no 1º semestre de 2019 o maior percentual de verbas publicitárias para a televisão foi destinado para a Rede Record e o Sistema Brasileiro de Televisão, em detrimento da Rede Globo. Embora com índices bem menores de audiência, as duas primeiras redes receberam, respectivamente, 42,61% e 41,01% das verbas, enquanto à Globo coube 16,38%, invertendo a relação dos anos anteriores[42].

Os prejuízos trazidos pelas ações do governo ao debate público também decorrem de suas políticas na área cultural. Nesse setor, Bolsonaro tem mantido um controle estrito sobre a Secretaria da Cultura e os órgãos a ela vinculados, nomeando para seus principais cargos pessoas que compartilham uma visão ultraconservadora e se dispõem a promover perseguições ideológicas no meio artístico. A visão do atual governo pode ser exemplificada por uma recente declaração de Roberto Alvim, Secretário da Cultura, em reunião da UNESCO, na qual afirmou que a arte brasileira se transformou “em um meio para escravizar a mentalidade do povo em nome de um violento projeto de poder esquerdista”[43]. Além das constantes declarações contra vários dos principais nomes da cultura nacional, a “guerra cultural” encetada pelo governo atinge diretamente vários setores com cortes de recursos, como a Agência Nacional de Cinema[44], ou com a imposição de censura e controle ideológico sobre o financiamento público das produções artísticas e até mesmo sobre a publicidade governamental[45]. Essas ações do governo foram colocadas sob o crivo do STF, que deverá decidir se elas violam a liberdade de expressão[46].

O fortalecimento do debate público ainda requer que a sociedade civil disponha de canais de diálogo com o governo e de liberdade para criticá-lo. Nesse campo, Bolsonaro também agiu em sentido contrário à prática da democracia. Além da tentativa de estabelecer um controle sobre as ONGs na Secretaria-Geral da Presidência da República, que foi derrubada pelo Congresso Nacional, o governo editou os Decretos nº 9.759/2019 e nº 9.812/2019, que extinguiam a Política Nacional de Participação Social e centenas de órgãos colegiados da administração federal criados para viabilizar a participação da sociedade na formulação e fiscalização das políticas públicas. Os efeitos desses decretos foram parcialmente suspensos por liminar do STF, que manteve em funcionamento os colegiados que haviam sido criados por lei.

Os ataques aos adversários também ocorrem por meio da disseminação de fake news pelo próprio Bolsonaro, seus filhos e assessores mais próximos. Essa prática já havia sido extensamente utilizada durante a campanha eleitoral e continua servindo como um instrumento de distorção do debate público. Sua eficácia já foi comprovada: segundo estudo da organização Avaaz, 98,21% dos eleitores de Bolsonaro foram expostos a uma ou mais notícias falsas durante a campanha e 89,77% acreditaram que os fatos eram verdade, dentre os quais informações sobre fraudes nas urnas eletrônicas e o “kit gay” que seria distribuído nas escolas[47].

Em dezembro, a Deputada Joice Hasselmann, que foi líder do governo no Congresso Nacional, denunciou que a disseminação de fake news é comandada pelo próprio Palácio do Planalto, com auxílio de robôs e uso de dinheiro público[48]. Dentre as várias mentiras propagadas por Bolsonaro e seus apoiadores, encontram-se as acusações de que as queimadas na Amazônia seriam provocadas por ONG’s[49], a negação de crimes cometidos pela ditadura militar[50] e a acusação de terrorismo dirigida contra a oposição[51]. Levantamento da Folha de S. Paulo concluiu que Bolsonaro produz ao menos uma declaração falsa ou imprecisa a cada quatro dias[52].

Tão grave quanto a disseminação de fake news, é o uso das redes sociais comandadas por Bolsonaro para atacar diretamente os demais poderes e as instituições democráticas. Tanto os membros do Congresso Nacional quanto do STF têm sido constantemente vítimas de campanhas difamatórias veiculadas pelas redes sociais. A síntese dessas manipulações aparece em um vídeo divulgado pelo próprio Bolsonaro, em que ele se apresenta como um leão atacado por hienas, que são identificadas com os partidos de oposição, a imprensa e o STF[53].

Não se pode imaginar que tantos atentados à democracia sejam fruto do acaso ou meros excessos, sem maiores consequências. Ao contrário, o que se observa é uma constante estratégia de enfraquecimento de instituições fundamentais da democracia, que serve a um projeto autoritário de poder. Não se deve estranhar que o final do primeiro ano do Governo Bolsonaro tenha sido marcado por ameaças de decretação de um novo Ato Institucional nº 5, feitas por um de seus filhos[54] e pelo Ministro Paulo Guedes[55]. Reagir a essa estratégia de corrosão da democracia é indispensável para que o autoritarismo deixe de avançar no Brasil.

*ANTONIO MOREIRA MAUÉS é professor Titular do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA) e integrante da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia)