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A inconstitucionalidade da MP 905/19

Fonte: Carta Capital.

A quantidade de reduções e mitigações é assustadora e cruel, atingindo em cheio as parcelas mais suscetíveis da população brasileira.

Fila de desemprego | Foto: Carta Capital / Reprodução.

No dia 05 de outubro do ano de 1988, entrou em vigência a Constituição Federal conhecida como Carta Cidadã, que representou, então, um marco histórico para a evolução civilizatória e para a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros.

Assim se verifica por uma simples leitura dos seus arts. 1º e 3º, que elucidam ser a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, que tem como um dos objetivos fundamentais a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais.

Mais à frente, os arts. 6º e 7º elencam direitos mínimos a serem assegurados pelo Estado, além de uma fundamental garantia de vedação a qualquer tentativa de estabelecerem-se regras que venham a trazer retrocessos sociais, entendidos estes como a redução de direitos até então conquistados. Em outras palavras, o texto constitucional vigente estabelece patamares mínimos civilizatórios, que não podem ser mitigados ou restringidos, mas tão-somente ampliados.

Dentre os direitos assegurados, classificados como “direitos sociais”, estão a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

E, talvez mais importante que o próprio elenco acima mencionado, o caput do art. 7º da Constituição Federal abre espaço para a efetivação de tais direitos, expressamente determinando comporem o patrimônio jurídico dos brasileiros, além de outros que visem à melhoria de sua condição social.

O que buscou o legislador constitucional foi a consolidação de garantias, assegurando não poderem sofrer qualquer recuo, independentemente do contexto político, econômico ou social que viessem a se desvelar nos próximos anos.

Após a promulgação da referida Carta Cidadã, muitos foram os episódios políticos que se descortinaram, tendo o país passado por dois processos de impeachment, diversas crises sociais e econômicas, e o crescimento exponencial do modelo econômico neoliberal, também resultado da pressão de setores econômicos influentes, como o mercado financeiro.

Neste contexto, com base nas mais diversas justificativas e sob muitas roupagens, o governo que ascendeu ao poder após o Golpe de 2016 trouxe à pauta inúmeros projetos de lei com vistas à agradar o capital, proporcionando uma redução dos custos com mão-de-obra, em detrimento daquele que ocupa a outra ponta do sistema de produção: o trabalhador.

Assim, assistimos a tramitação relâmpago do que viria a se tornar a Lei nº 13.467/2017, popularmente conhecida como Reforma Trabalhista, que, dentre outras perversidades, afastou ainda mais do trabalhador a possibilidade de se valer do Estado para ver cumpridos e adimplidos direitos que lhe pertencem, dificultando-lhe o acesso ao Judiciário de forma gratuita e integral, como assegura o texto constitucional.

Mais recentemente, precisamente em 12.11.2019, foi publicada a Medida Provisória nº 905/2019, que institui o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo, altera a legislação trabalhista, e dá outras providências.

Inicialmente, é primordial salientar que referido texto legislativo sequer atende ao que determina a Constituição Federal, quanto à sua forma, sendo certo que nenhuma de suas disposições estão revestidas da relevância e urgência a que aludem o caput do art. 62 da Carta Magna.

Inobstante sua falha insanável de formação, também é necessário frisar que as matérias lá tratadas afrontam o que há de mais comezinho em termos de princípios e garantias assegurados pelo texto constitucional.

A justificativa principal para a edição da referida medida provisória é a de gerar empregos, especialmente entre a população que busca sua primeira colocação no mercado de trabalho.

A falácia do discurso é flagrante e escandalosa. Primeiro porque se propõe ao registro do primeiro emprego em CTPS, mas é voltada especificamente aos cidadãos que tenham entre dezoito e vinte e nove anos de idade, o que está longe de refletir a realidade produtiva da população brasileira, que inicia sua vida economicamente ativa em idade muito mais tenra, infelizmente.

Em outras palavras, dada a precariedade das condições de vida e de subsistência da esmagadora maioria da população, jovens começam a trabalhar muito mais cedo, e o texto legal em análise permite admitir que esta parcela continuará à margem de qualquer proteção legal.

Ademais, embora estabeleça condições restritivas às empresas para a contratação de empregados nessa nova modalidade, como a sua limitação ao preenchimento de vagas decorrentes de novos postos de trabalho, na prática não deixa claro de que forma será apurada a abertura destes. O que é certo é que não se restringem à constatação de aumento de quadro de funcionários, como se infere da leitura do §5º do artigo 2º, que autoriza o contrato “verde e amarelo” para as empresas que, em outubro de 2019, apurarem quantitativo de empregados inferior em no mínimo trinta por cento em relação ao total de empregados registrados em outubro de 2018.

A contradição se acentua quando verificamos que há previsão de contratação de empregados para a substituição transitória de pessoal permanente (art. 5º, §1º), o que não se harmoniza com o conceito de “novos postos de trabalho”.

Verifica-se que a Medida Provisória nº 905 adota um discurso já ultrapassado e comprovadamente enganoso de que a redução do custo com a folha de pagamento gerará novos empregos (mais empregos e menos direitos), o que nunca se confirmou, na prática, como se infere do aumento no percentual de desemprego após o início de vigência da Lei nº 13.467/2017 (reforma trabalhista).

O que se verifica é uma elevação exponencial do número de desempregados e desalentados, assomado a uma diminuição brutal do alcance dos direitos trabalhistas duramente conquistados ao longo do século passado.

E esta legislação representa exatamente isto: menos empregos e menos direitos. A iniciar pelo barateamento dos custos produtivos com mão-de-obra, ao estipular um teto salarial de um salário mínimo e meio nacional (art. 3º, caput), o que equivale, atualmente, a R$ 1.497,00.

A indenização do FGTS (valor pago pelo empregador na resilição contratual), por sua vez, é reduzida pela metade (20%, ao invés dos 40% previstos na Lei nº 8.036/90 – art. 6º, §2º), e incidirá sobre o saldo também reduzido, visto que o aporte mensal diminuiu de 8% para 2% (art. 7º, caput). Cumpre salientar que a própria figura do FGTS já representou um retrocesso de direitos, vez que veio a substituir garantia mais benéfica vigente à época, configurada pela estabilidade decenal assegurada no art. 492 da CLT.

Na sequência, verifica-se talvez uma das mais emblemáticas alterações operadas pela Medida, que reflete de forma fiel a intenção do Governo ao editá-la. Enquanto o art. 9º isenta o empregador do recolhimento das contribuições previdenciárias dos trabalhadores contratados através desta modalidade, o seu art. 49 altera a legislação previdenciária (inclusão do §16º ao art. 12 da Lei nº 8.212/91) para prever a obrigatoriedade de que o trabalhador desempregado, que esteja percebendo o benefício seguro-desemprego, proceda a tal recolhimento. Ou seja: isenta o empresário de um lado, para sobrecarregar o trabalhador de outro.

Por fim, embora o contrato de trabalho “verde e amarelo” seja voltado exclusivamente para as relações de trabalho estipuladas a prazo determinado, e possua previsão, no art. 4º, de garantia dos direitos constitucionais assegurados, a Medida Provisória expressamente exclui a indenização rescisória prevista no art. 479 da CLT, que assim dispõe:

Nos contratos que tenham termo estipulado, o empregador que, sem justa causa, despedir o empregado será obrigado a pagar-lhe, a titulo de indenização, e por metade, a remuneração a que teria direito até o termo do contrato.   

Cumpre destacar que a supressão da referida indenização se afigura manifestamente colidente com a garantia constitucional prevista no art. 7º, I, da CF/88, que assegura relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos.

Ainda, dentre as diversas maldades perpetradas através da Medida Provisória em questão, vislumbra-se a redução da alíquota paga a título de adicional de periculosidade, paga como forma de compensar aqueles trabalhadores que laborem em condições perigosas, e que ofereçam riscos à sua incolumidade física. Além de estabelecer o direito somente àqueles que laborem em atividades perigosas por, no mínimo, 50% da jornada de trabalho (olvidando que o evento danoso não possa ocorrer em uma fração de segundo), ainda reduziu o adicional de 30% para 5% do salário base.

Como dito alhures, talvez uma das mais importantes previsões inseridas no texto constitucional foi a garantia de vedação a qualquer medida que venha a significar retrocesso social, somente havendo possibilidade de alterações que venham a ampliar os direitos já existentes.

Não obstante, pela sucinta avaliação feita nas linhas acima, não foi possível identificar qualquer dispositivo que tenha alargado a gama de direitos sociais e trabalhistas assentadas no arcabouço legislativo pátrio. A quantidade de reduções, limitações e mitigações é assustadora e cruel, atingindo em cheio as parcelas mais suscetíveis da população brasileira, que será a primeira a pagar pela política agressivamente neoliberal adotada pelo Governo.

Portanto, assoma-se ao vicio formal da edição da Medida Provisória um insanável e intrínseco vicio material, que é a sua inata incompatibilidade com os princípios e garantias expressamente assegurados pela nossa Constituição Federal.