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NADi APUBHUFMG+ entrevista Maria Stella Goulart: 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial

“Desmascarando a hipocrisia: loucura é verso, e liberdade, poesia” é o tema, deste ano, do ato público, em Belo Horizonte, do Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Celebrada no dia 18 de maio, a data coloca em evidência a necessidade de discussão, compreensão e mobilização sobre o modo como a sociedade lida com o sofrimento mental, bem como as políticas de Estado voltadas à saúde psiquiátrica. Na conjuntura atual, em que o governo federal promove o desmonte dos serviços públicos prestados à população, inclusive as políticas de saúde pública, o debate sobre o tema se torna ainda mais relevante.

Já no caso da universidade, precisamos refletir sobre as políticas adotadas institucionalmente, assim como no modo que compreendemos e lidamos com o sofrimento mental da comunidade acadêmica, especialmente daquele que se origina da própria dinâmica de trabalho do meio acadêmico.  Esse tema, inclusive, possui notável engajamento do APUBHUFMG+, recebendo atenção especial do Núcleo de Acolhimento e Diálogo (NADi). Em 2022, assim como nos anos anteriores, o sindicato se envolve, ativamente, na Semana de Saúde Mental da UFMG e nas mobilizações do Dia Nacional da Luta Antimanicomial.

Para aprofundarmos a discussão sobre esse tema, o APUBHUFMG+ conversou com a psicóloga social Maria Stella Brandão Goulart, que leciona no Departamento de Psicologia da FAFICH/UFMG. Referência nacional na pesquisa e luta antimanicomial, a docente presidiu a Comissão Institucional de Saúde Mental (CISME) e, atualmente, coordena o Programa de Extensão em Atenção à Saúde Mental (PASME).  A professora Stella é integrante e uma das fundadoras do NADi APUBHUFMG+, além de ter presidido o sindicato na gestão 2018/2020.

Confira, a seguir, a entrevista.

A professora Maria Stella Brandão Goulart é integrante e uma das fundadoras do NADi APUBHUFMG+, além de ter presidido o sindicato na gestão 2018/2020 | Foto: APUBHUFMG+.

APUBHUFMG+: Com a proximidade do dia 18 de maio, em que celebramos o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, qual a sua reflexão sobre as políticas brasileiras de saúde mental e a atuação do APUBHUFMG+?

Maria Stella Brandão Goulart: O NADi, o Núcleo de Acolhimento e Diálogo do APUBHUFMG+, é, de certa forma, um desdobramento de um esforço muito grande que vem sendo construído há décadas, no Brasil, que se insere no contexto da reforma psiquiátrica brasileira e de toda uma luta de libertação, que se dirige às instituições sociais, se dirige ao questionamento dos nossos modos de exclusão e de inclusão, se dirige à forma como nós compreendemos o que vem a ser sofrimento e sofrimento mental e o que vem a ser adoecimento e adoecimento mental. E, fundamentalmente, o que seria o desafio de uma vida plena.

A reforma psiquiátrica brasileira tem uma longa história, que nós podemos colocar como marco os anos de 1978 e 1979. E a sua efetivação, em toda uma forma de concepção de tratamento em liberdade, se configura, especialmente, a partir dos anos 1990. São processos muito importantes, processos que nos ajudam a refletir sobre a dimensão estrutural, inevitável e inescapável do sofrimento, mas que nos colocam o desafio de como manejamos o sofrimento, de como dialogamos com o sofrimento, de como construímos, acolhendo o nosso sofrimento e o sofrimento das outras pessoas.  Isso significa, fundamentalmente, construir a não-exclusão, construir a compreensão de que a liberdade é o fundamento de todas as ações do campo da saúde.

Nessa perspectiva, é importante considerar que também temos que – nesse processo de acolhimento do sofrimento, que faz parte da condição humana – atravessar a invisibilidade que produz a exclusão. Nós tiramos de cena esse desconforto, como se ele não existisse; no entanto, atualmente, ele grita, grita da manhã à noite, como uma urgência para todas e todos nós.

 

Como essa forma de compreender e lidar com o sofrimento mental se manifesta na UFMG? E qual a atuação do sindicato nesse sentido?

Na Universidade Federal de Minas Gerais e nas universidades federais como um todo, isso se traduz no desenvolvimento de uma atenção dirigida à forma como essa relação entre professor, professora, estudantes, técnico-administrativos, como esse conjunto de relações operam. E como, olhando para isso, podemos desenhar possibilidades desse exercício de libertação que vêm com a reforma psiquiátrica e, fundamentalmente, com a luta antimanicomial. É uma luta contra todas as formas de exclusão, uma luta contra os manicômios mentais e uma luta em defesa de uma visão mais generosa da condição humana.

A política de saúde mental da UFMG foi proposta e construída coletivamente com essa direção ética. E ela, através dos dispositivos de escuta que foram sendo estruturados, ao longo desses últimos anos, tem atingido, tem tocado e acolhido, de uma forma muito significante, os estudantes. E tem acolhido também de forma muito importante as e os técnico-administrativos. Mas professoras e professores ainda estão distantes do acesso a esse acolhimento possível do sofrimento nas relações de trabalho. Ou mesmo de um sofrimento que não tem a ver com as relações de trabalho, mas que é um sofrimento que a pessoa traz da sua vida privada. E, atualmente, tem sido a experiência de invasão da vida provada, a partir das tecnologias contemporâneas. Esse tem sido um tema muito importante para o nosso sindicato de professoras e professores.

O NADi, repito, é um desdobramento disso. É um esforço de construção de uma pauta de reflexão e de ações que possam responder a esta identificação que temos feito, de onde reside o mal-estar, o mal-estar corrosivo, o mal-estar que nos impede de ter uma realização profissional plena e de sermos ativos e construtores dessa universidade maravilhosa, que é a UFMG. Participar da Semana de Saúde Mental da UFMG, que eu tive o prazer de inaugurar, enquanto sindicato e professora, significa entrar na sintonia e compreender que saúde mental e sofrimento mental são processos coletivos. E isso diz respeito ao modo como são construídos e sustentados.

 

O APUBHUFMG+ celebra o Dia de Luta Antimanicomial e participa, ativamente, da Semana de Saúde Mental da UFMG. Qual a sua opinião sobre o envolvimento do sindicato de docentes da UFMG nesses movimentos?

Abraçar o tema da luta antimanicomial e da saúde mental na universidade tem uma relevância enorme. Significa afirmar o direito de não estar bem. Afirmar o reconhecimento das contradições e dos limites do nosso cotidiano de trabalho e da forma como operamos dentro da universidade. Dentro disso, por exemplo, falar sobre o produtivismo – não sobre a produção, o nosso desejo de produção intelectual, mas falar sobre o produtivismo. Falar sobre os excessos e um tipo de pressão que nos destrói, divide, individualiza e apequena. Nós não precisamos ser pequenos diante do desafio de produção do conhecimento. Nós podemos ser mais do que isso. Nós podemos ser coletivos, colaborativos, solidários. Essa é a universidade que nós acreditamos.

Para ser breve e objetiva, eu acho que vale a pena reportar aos princípios que foram construídos para a política de saúde da universidade e que devem ser publicizados sistematicamente. Essa é uma pauta sindical importante. Porque essa construção não foi burocrática e institucional, foi uma construção participativa. E eu tive o prazer de coordenar esse processo. Celebrando Dia Nacional de Luta Antimanicomial, que é 18 de maio, e integrando a Semana de Saúde Mental com o nosso sindicato APUBHUFMG+, eu queria elencar, mais uma vez, esses princípios, chamando os professores para o diálogo com isso.

São quatro os princípios. O primeiro é universidade para todos e todas – acolhedora, flexível, acessível, inclusiva e solidária. O segundo princípio da política de saúde mental da UFMG é o protagonismo das pessoas com experiência de sofrimento mental – que são, na verdade, os verdadeiros especialistas, quem passa pela experiência de sofrimento. Em terceiro lugar, o respeito à vida e aos valores éticos da convivência humana. Isso abre e atravessa o sindicato de uma forma importantíssima. Por fim, o quarto princípio, que é o início de tudo: a sintonia e a defesa do Sistema único de Saúde, o SUS, da política de saúde mental brasileira, que data de 2001, e de todo o arcabouço legal que compõe e orienta os programas municipal, estadual e nacional de saúde mental para o tratamento territorial e comunitário em liberdade.

Nós temos que construir a sintonia, dentro desse quarto princípio, a Política de Atenção à Saúde e Segurança no Trabalho do Servidor Público Federal (PASS) e da Política de Direitos Humanos da UFMG, que é uma resolução de 2016. Abraçar tudo isso, entrar nessa cena é um convite muito importante que o APUBHUFMG+ vem fazendo. Nós esperamos que isso seja, suficientemente, forte para enfrentar toda a fúria de desmonte e destruição que o atual governo estimula. Eu deixo aqui uma palavra de estímulo, apesar da situação, das circunstâncias e de tudo que nós vivemos, mas uma palavra de estímulo e de confiança na construção coletiva de relações de trabalho sempre melhores e de um mundo melhor.

 

Nos últimos anos, o governo federal tem protagonizado um processo acelerado de desmonte dos avanços alcançados pela Reforma Psiquiátrica. Como esses ataques ao modelo de atenção psicossocial interferem na continuidade da luta antimanicomial e quais são os danos para a sociedade?

Os ataques do governo não vão impedir a continuidade da luta antimanicomial. Pelo contrário, eu acho que há uma esperança enorme na mudança e na reconquista de um horizonte mais pródigo e respeitoso, onde as pessoas possam ser mais felizes e estar melhor na vida, na sociedade e no Brasil. É difícil definir os danos. Atualmente, nem o sistema de dados do Ministério da Saúde é confiável. Então, vamos caminhando com muita esperança na nossa capacidade de mobilização e de superação. De fato, a tentativa de desmonte da rede de atenção psicossocial não conseguiu reverter, pelo menos, três décadas de história e de lutas. A palavra, agora, é “esperançar”.

Foi através da Semana de Saúde Mental que a universidade descobriu toda uma perspectiva de trabalho que é, efetivamente, revolucionária e necessária. E foi dentro dessa semana, também, que o nosso sindicato passou a construir os vínculos necessários para entendermos o tratamento em liberdade e para defendemos a rede de atenção psicossocial e seus trabalhadores, a partir de laços de solidariedade.

Um indicador de que não haverá recuo no movimento de luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica brasileira é a realização da 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental, que está acontecendo em diferentes etapas ao longo desse ano de 2022. E nós esperamos que a última etapa, que acontece em novembro, seja dentro de uma nova perspectiva de retomada da democracia brasileira.

Francamente, eu não quero encerrar essa entrevista falando desse cenário tão difícil. Eu quero encerrar essa entrevista falando desse cenário maravilhoso que se configura na UFMG, que abraça o 18 de maio, Dia Nacional de Luta Antimanicomial. Quero falar dessa UFMG que pode afirmar os seus princípios e dá continuidade a essa construção, com a participação de todos. E quero celebrar a entrada na cena do sindicato dos professores, que pode contribuir muito para a construção da reforma psiquiátrica brasileira, sensibilizando todas e todos, seja no que diz respeito ao acolhimento das pessoas e no tratamento em liberdade, como estimulando o ensino e as pesquisas na área, através da necessária pressão para que a universidade pactue com os movimentos sociais que constroem a cidadania brasileira, os horizontes de vida e a luz no final do túnel.

 

SAIBA MAIS | Política de Saúde Mental da UFMG: https://www.ufmg.br/saudemental/na-ufmg/principios-e-diretrizes/