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ENTREVISTA | Luiz Carlos Villalta: “A História é inimiga deste governo”

O APUBH UFMG+ conversou com o professor do Curso de História da FAFICH/UFMG sobre a rememoração do Bicentenário da Independência do Brasil (1822-2022), no contexto atual do país, de sucateamento da Educação Pública e de ataques à Democracia.

Em entrevista concedida ao APUBH UFMG+, o professor Luiz Carlos Villalta, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH/UFMG), abordou a rememoração do Bicentenário da Independência do Brasil (1822-2022). Na conversa, também foi abordado o contexto atual do país, de sucateamento da Educação Pública e de ataques à Democracia. Villalta possui doutorado em História Socialpela Universidade de São Paulo (USP) e ocupa, atualmente, os cargos de Vice-Secretário Geral do APUBHUFMG+ e de Secretário Geral da Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil). Confira, a seguir, a entrevista na íntegra:

 APUBH UFMG+: Neste ano, começamos as comemorações do bicentenário da independência do Brasil. O que este fato significou à época que ocorreu?

Luiz Carlos Villalta: A Independência do Brasil era, de algum modo, inevitável. Poderia ter ocorrido antes, ou depois de 1822-1823. Mas ela aconteceria mais cedo ou mais tarde. O Antigo Regime, ordem social e política derrubada com a Revolução Francesa (e, no mundo luso-brasileiro, como explicarei a seguir, com a Revolução do Porto), perdeu progressivamente sua sacralidade na passagem do século XVIII para o século XIX. O poder absoluto dos reis, as hierarquias sociais, as instituições existentes, a religião e a Igreja católicastornaram-se objetos de críticas e contestações, deixaram de ser vistos como “naturais”, “intocáveis”, “inatacáveis”. Em algumas análises, presentes em livros de fins do século XVIII e feitas no Brasil nos idos de 1822-1823, fazia-se a analogia entre os vínculos de pais e filhos e as relações estabelecidas pelas metrópoles europeias e suas colônias americanas: ou seja, haveria um momento em que seria natural a emancipação de filhos e, igualmente, das colônias. Natural, a emancipação tornava-se uma realidade histórica nas Américas: à época de nossa Independência, com exceção de Cuba, das Guianas e do Canadá, todos os países eram independentes.

O formato que a Independência do Brasil assumiu e o momento em que aconteceu, porém, são indissociáveis de trêstransformações históricas anteriores: a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, em 1808; a Revolução de 1817 (que atingiu Pernambuco, incluindo a então comarca de Alagoas, e a Paraíba, o Rio Grande do Norte e parte do Ceará);e a Revolução Constitucional do Porto de 24 de agosto de 1820. Vou discorrer sobre cada uma dessas transformações.

Em janeiro de 1808, d. João, aindaem Salvador, abriu os portos brasileiros às nações amigas, pondo fim ao exclusivo comercial português, base do domínio colonial.

Com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, a atual capital fluminense passou a ocupar o lugar de Lisboa, transformando-se em sede do Império português. Ali, no Rio, estabeleceram-se a rainha d. Maria I, d. João, o Príncipe Regente, sua esposa, d. Carlota, outros membros da família real, nobres,altos oficiais civis e militares da monarquia, comerciantes, clérigos etc. Essas pessoas se somaram a membros das elites do centro-sul do Brasil no usufruto de vantagens associadas à monarquia absoluta e à espoliação colonial.

Portugal, enquanto isso, teve de enfrentar invasões de franceses e, depois da derrota destes, o domínio inglês. Com tudo isso, perdeusua posição de preeminência no interior do Império português para o centro-sul do Brasil.

Nas capitanias do Norte do Brasil, onde, como nas outras partes, inicialmente houve um entusiasmo com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro (afinal, a América passaria a ser o centro do Império), passou a existir muito ressentimento contra a situação que passaram a viver, de arcar com elevação de tributos para sustentar a nova Corte e de ver a tutela apenas mudar de lugar: de Lisboa para a capital fluminense.

Em 1815, o Brasil perdeu o estatuto de colônia, transformando-se em Reino Unido a Portugal e Algarves.

Com tudo isso, constituíram-se, de um lado, grupos interessados na preservação da sede da monarquia no Rio de Janeiro e, de outro lado, ódios, em Portugal e em outras partes do Brasil, contra esse mesmo governo monárquico e absoluto do Rio de Janeiro.

Em 1817, no dia 06 de março, eclodiu no Recife uma revolução que se alastrou por boa parte do que hoje chamamos de Nordeste, levando à instalação de uma república, que durou 75 dias. A revolução trouxe várias inovações:além da instauração de governos republicanos, as propostas de fazer-se uma constituição, de abolir-se lentamente a escravidão e de instituir-se a liberdade de imprensa e de religião (restrita ao cristianismo). A Revolução de 1817, que se opunha ao que chamava de “despotismo do governo do Rio de Janeiro” (isto é, o governo absoluto e a espoliação colonial por ele comandada), foi derrotada por tropas vindas de Lisboa, do Rio de Janeiro e da Bahia, com muito derramamento de sangue, mortes e prisões.

A Revolução do Porto, iniciada na cidade homônima em 24 agosto de 1820, por sua vez,conquistou Portugal e uma a uma das capitanias do Brasil. Trazia como ideal a volta de d. João VI (rei desde 1816) para Lisboa e a recuperação da posição que Portugal perdera em seu Império para o centro-sul do Brasil. Era uma revolução contrária ao absolutismo e em defesa da instalação de uma ordem política constitucional e liberal. Este último ponto é central para se entender o apoio que ganhou no Reino do Brasil.

Esse ideário constitucional, saliente-se,contagiou Portugal e o Brasil. As capitanias setentrionais do Brasil, transformadas em províncias, além de terem em mira esse ideal, viam, na Revolução e na assembleia constituinte que ela convocara, um modo de conquistar maior autonomia e livrar-se do despotismo do Rio de Janeiro.

Nas províncias do centro-sul, o ideário liberal e constitucional também foi muito bem recebido.

  1. João, sob pressões de populares no próprio Rio de Janeiro, sem ter como reagir, aceitou a Revolução Liberal e a ordem de sua partida para Lisboa, deixando aqui d. Pedro, seu filho, como Príncipe Regente do Reino do Brasil.

Em Lisboa, a assembleia constituinte, chamada de Cortes, em que o Brasil tinha uma representação quantitativaproporcionalmente menor do que o seu número de habitantes lhe daria, começou os trabalhos antes da chegada dos deputados brasileiros. Nas Cortes, predominava a ideia de manter-se uma monarquia constitucional com um poder executivo e um poder legislativo centrais em Lisboa, eliminando-se a centralidade que fora conquistada pelo Rio de Janeiro, até mesmo em relação ao Reino do Brasil.

As Cortes, além disso, tomaram uma série de iniciativas para sufocar os anseios de maior autonomia das províncias, para extinguir órgãos superiores da monarquia absoluta instalados no Rio de Janeiro e, ainda, por isso mesmo, para fazer d. Pedro voltar para Portugal, antes viajando por outros países da Europa para melhorar sua educação, minando seus poderes como regente do Reino do Brasil.

Em fins de setembro e inícios de outubro de 1821, essas iniciativas das Cortes vieram a ganhar forma, desencadeando forte reação de grupos do Centro-Sul do Brasil. A instituição de governadores de armas (autoridades militares superiores) em cada uma das províncias do Brasil, subordinados exclusivamente a Lisboa e sem vínculos com os governos provinciais estabelecidos pelos grupos das elites, foi muito combatida. Gerou conflitos sérios em Pernambuco e na Bahia.

Em Portugal, Nicolau de Campos Vergueiro, deputado por São Paulo às Cortes Constituintes em 1821-1822, percebeu a inevitabilidade da Independência do Brasil. Declarou que, depois da Independência Americana, em 1776, o sentimento de emancipação surgiu no Brasil, desencadeando movimentos (a Inconfidência Mineira, por exemplo, foi um deles). Acrescentou que a vinda da Corte, em 1808, fez esse anseio de autonomia retrair-se. Porém, o governo do Rio de Janeiro alimentou sua volta, levando à Revolução de 1817. A Revolução do Porto de 1820, segundo Vergueiro, tinha feito com que ele recuasse. Porém, o deputado, já depois dos decretos de setembro e outubro de 1821, ameaçava: se o Brasil fosse desrespeitado pelas Cortes, apesar do medo de uma insurreição escrava, tomaria o rumo de lutar pela Independência.

Os brados dos representantes das províncias do Brasil nas Cortes não conseguiram deter sua orientação no sentido de refutar os anseios descentralizadores e de reprimir militarmente insurgências.

Nas províncias do Brasil, no primeiro semestre de 1822, reações às decisões das Cortes começaram a dar-se. Elasnão foram uniformesnem tiveram inicialmente um sentido claro de Independência. Grupos e instituições das elites das províncias do centro-sul posicionaram-se contra a volta de d. Pedro para Portugal, levando o príncipe à decisão de ficar cá, em 9 de janeiro de 1822 (o famoso Dia do Fico).O Fico, porém, não foi a unanimidade que imaginamos. No Maranhão, por exemplo, em tendência contrária, a decisão do príncipe de Ficar foi bastante criticada pela imprensa local, afinal, d. Pedro era o representante de um governo absoluto e do despotismo do Rio de Janeiro, enquanto as Cortes de Lisboa eram a instituição fiadora da ordem constitucional e liberal em construção.As províncias do então Norte, saliente-se, tinham ligações de maior proximidade com Lisboa do que com o Rio de Janeiro, sobretudo o Grão-Pará e o Maranhão.

  1. Pedrotinha sido alertado por seu pai, d. João VI, sobre os possíveis anseios emancipacionistas existentes no Brasil, recebendo a orientação para liderá-los se percebesse que eram inevitáveis. Suas ações, entre março e outubro de 1822, mostram que foi fiel aos ensinamentos paternos.

E o príncipe agiu também sob pressões diversas. As decisões de seu governo no Rio de Janeiro eram desrespeitadas por boa parte das províncias do Brasil. Algumas delas negavam-lhe apoio financeiro, enquanto outras o faziam do ponto de vista militar. Tropas vindas de Portugal o ameaçavam.

Ordens e decretos das Cortes, bem como ameaças e enfrentamentos militares ocorridos no Brasil foram sedimentando as posições das elites do Centro-Sul a favor da Independência, embora lhes fosse muito difícil deixar de verem-se como portuguesas. Em 13 de janeiro de 1822, as Cortes extinguiram a Casa de Suplicação do Rio de Janeiro, tribunal superior criado por d. João quando de sua chegada. Embates na Bahia e em Pernambuco, entre tropas portuguesas e governos ou habitantes locais, passaram a ocorrer e chamar a atenção.

Ao mesmo tempo, grupos das elites do centro-sul, valendo-se da imprensa e das câmaras municipais, ou de autoridades provinciais, realizaram movimentos para um enfrentamento mais contundente em relação às Cortes, ou vieram a dar apoio ao Príncipe quando ele tomou a decisão de fazê-lo. D. Pedro, por exemplo, viajou para Minas Gerais em março-abril de 1822 para seduzir as câmaras municipais e dobrar o governo provincial estabelecido em Vila Rica, conseguindo retornar vitorioso ao Rio de Janeiro. Sob pressão, além disso, em 03 de junho de 1822, convocou uma assembleia constituinte brasileira. Em teoria, ele a convocara para convalidar (ou não) o que fosse estabelecido em Lisboa, masjá apostava numa ruptura. Em 1º de agosto de 1822, d. Pedro fez um Manifesto aos Habitantes do Brasil em que, na prática, selava a decisão de Independência. Além de mencionar o protagonismo das províncias meridionais do Brasil para essa orientação, ele refutava os perigos da anarquia, da fragmentação política, da república e da democracia (e isso dá bem o tom de seus propósitos). No Manifesto, mostrou-se, ao mesmo tempo, ser oposto aos governos que enganavam os povos e fundavam-se na ignorância, tomando a felicidade destes como um fim (nesse sentido, d. Pedro está muito distante do governo genocida e de trevas de Jair Bolsonaro e de seus generais). O que d. Pedro e os grupos hegemônicos no centro-sul delineavam era uma Independência que preservasse a integridade territorial do Brasil, sob uma monarquia, com a casa de Bragança à testa, mantendo-se a escravidão e as hierarquias sociais, mas sob um ordenamento político constitucional. Havia divergências entre os grupos hegemônicos sobre o lugar do futuro imperador na nova ordem constitucional, ou sobre os poderes respectivos das províncias e do governo do Rio de Janeiro.

  1. Pedro, em 12 de outubro de 1822, foi aclamado Imperador e, em 1º de dezembro do mesmo ano, coroado.

Isso não significou que a Independência estivesse ganha. Depois de junho-agosto de 1822, coube ao Príncipe e aos grupos hegemônicos no Centro-Sul ampliar o apoio das outras províncias à causa da Independência. Em várias localidades, uma verdadeira guerra civil instaurou-se, com a presença de segmentos socialmente excluídos. A vitória do projeto pedrino (monárquico, bragantino, constitucional, escravista, com a preservação da unidade do Brasil) se fez pela persuasão e pelas armas, com o uso de tropas mercenárias para vencer resistências ferozes. Setores populares manifestaram-se e, se sua participação foi decisiva em alguns casos para a vitória das tropas imperiais, noutros, eles viram suas vidas e seus sonhos serem rifados. Na Bahia, por exemplo, a vitória se deu em 2 de julho de 1823. A Província Cisplatina, atual Uruguai, foi a única que resistiu com vitória a esse projeto liderado pelo centro-sul e por d. Pedro.

Novos embates aconteceriam até a abdicação de d. Pedro, em 7 de abril de 1831, para alguns a verdadeira data de nossa Independência. Além disso, depois da morte de d. João VI, em 1826, d. Pedro e o governo brasileiro passaram a ter envolvimento direto na disputa pela coroa portuguesa. Havia mesmo a suspeita de que o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves fosse ressuscitado. Enquanto d. Miguel, irmão de d. Pedro, usurpava o trono português, a rainha menina, d. Maria da Glória, uma brasileira, filha de d. Pedro I e da imperatriz Maria Leopoldina, tinha sua pequena corte exilada no Rio de Janeiro… Só a abdicação, em 1831, e, mais ainda, a morte de d. Pedro I (d. Pedro IV, de Portugal), em 1834, mataram esse sonho.

O 7 de setembro, por fim, hoje cultuado como a data de nossa Independência, não o foi à época. Demorou a ser celebrado. O 12 de outubro, aniversário de d. Pedro I e também data de sua aclamação como Imperador, gozou de maior prestígio até a abdicação do nosso primeiro imperador.

Respondendo, enfim, em poucas palavras, à sua questão, a Independência do Brasil foi um movimento liderado pelas nossas elites do centro-sul, com apoio conquistado pela força das armas ou do convencimento em outras partes do país, visando a “mudar para manter”: mudar para um sistema político constitucional, segundo preceitos liberais, mas mantendo-se a ordem social intocável. Por isso, em alguns jornais brasileiros da segunda metade do século XIX, dizia-se que ela tinha sido um episódio caricato e uma trama palaciana –– se nós considerarmos o que foi vitorioso em 1822-1823, talvez possamos concordar parcialmente com tal juízo; se pensarmos que gritos de outros setores sociais se fizeram presentes, ainda que tenham sido derrotados, poderemos discordar.

Assim como qualquer efeméride política, a independência do Brasil, centrada no 7 de setembro, é permeada por inúmeros discursos, por vezes dissonantes. Quais os intuitos dessas mobilizações discursivas à época e quais são seus efeitos hoje em dia?

Como eu expliquei acima, o 7 de setembro não foi cultuado durante todo o primeiro reinado como data de nossa Independência. Ele era visto como um acontecimento menor em termos de ruptura entre Portugal e Brasil, ao menos até a abdicação de d. Pedro I, em 1831. Após essa data, o 7 de setembro foi ganhando maior espaço na memória.

Hoje em dia, o 7 de setembro é uma efeméride disputada por grupos políticos de orientações distintas.

Por um lado, no presente ano, viram-se as hordas fascistas valerem-se do 7 de setembro para tentar emplacar um golpe de Estado, que, tudo indica, foi sepultado por um “grande acordo” institucional, capitaneado pelo ex-presidente Michel Temer. A metáfora desse “grande acordo” talvez seja o jantar em que Temer e outros membros das nossas elites, homens brancos, de meia idade, alguns deles com verdadeiros prontuários criminais, riram da imitação do Presidente da República feita por um homem mais jovem. Nossas elites, no fundo, têm profundo asco por Jair Bolsonaro, mas o usam para manter seus privilégios, zombando de sua estupidez e de sua mediocridade, ao mesmo tempo em que legitimam seu governo genocida, antipatriótico e antipovo, governo excludente em relação aos não-brancos, aos pobres, aos excluídos de todos os naipes. A pauta do governo Bolsonaro, no fundo, é a mesma defendida por nossas elites.

As hordas fascistas bolsonaristas foram alimentadas, por cerca de uma década, por narrativas históricas paralelas, seguidas por milhões de brasileiros, que misturam erros históricos a um romanceamento infame dos acontecimentos de 1822-1823.

Por outro lado, temos já há muito tempo o “Grito dos Excluídos”, que tem orientação diametralmente oposta à observada nos atos oficiais do último 7 de setembro e que vem, ademais, na contramão das comemorações oficiais que costumeiramente se fazem na data.

No meu entendimento, as esquerdas estão pouco atentas à importância política que a memória histórica pode ter. Talvez estejam acordando dessa sonolência. Sustento, com muita segurança, que, para o sucesso do Golpe Militar que instituiu a República em 15 de novembro de 1889, foi decisiva a batalha travada nas décadas anteriores em torno da memória histórica.

Recentemente, foi lançada a iniciativa do Portal do Bicentenário, que é uma iniciativa constituída em rede e que visa produzir, editar, fazer curadoria, organizar e disponibilizar conteúdos sobre os 200 anos da Independência do Brasil e seus desdobramentos. Qual a importância deste tipo de iniciativa?

O Portal do Bicentenário é uma iniciativa importantíssima para fazer a disputa pela memória, em curso há anos, sobre a Independência do Brasil. Mais do que isso, o Portal abraça a perspectiva de fazer o Bicentenário uma ocasião para repensar o próprio Brasil, não se limitando ao sucedido em 1822-1823.

O Portal do Bicentenário não está sozinho. A Associação Nacional de História (Anpuh-Brasil) e a SBPC também vêm investindo neste esforço de rememoração. A Anpuh-Brasil realizou um evento sobre o tema, no início deste mês, acessível pelo Youtube. No Instagram, em sua conta, com o Ah!, seu canal de divulgação histórica, também está prosseguindo nesse esforço. Organizará em 2022 um grande evento sobre o tema.

Isso é extremamente salutar: que 2022 seja uma ocasião para que nos repensemos, como país, como sociedade, como nação: para que nos refundemos, livres das manipulações imperialistas norte-americanas, da tutela militar e, também, do entreguismo que marca a burguesia brasileira e a grande mídia que a serve. Precisamos ir para além daqueles limites fixados por d. Pedro I em seu Manifesto de 1º de agosto de 1822, retomando, desse importante documento, o propósito de instaurar uma ordem política que não se funde na ignorância e na enganação dos povos, mas que vise à sua felicidade. Eu insisto: d. Pedro I, com todo o autoritarismo que o marcou, era um homem e um político mais progressista que o atual Presidente da República. Até mesmo como figura humana, ele apresentava qualidades que o atual mandatário não possui: se era um homem que podia irar-se, ele era capaz de atos de generosidade e de afeto, de compadecimento com as dores alheias e de reconhecimento de seus erros. A insensibilidade do atual presidente da República, enfim, pode ser mais bem diagnosticada por psiquiatras e psicanalistas… Estes poderão, em futuro próximo, estabelecer paralelos entre o Brasil dos últimos anos e a Alemanha da época nazista, entre os líderes e povos de ambos os países.

O sucateamento da Educação Pública promovido pelo governo Bolsonaro é generalizado. Porém, este governo ataca ainda mais as pesquisas desenvolvidas no campo das Ciências Humanas, tal qual a história. Qual sua avaliação deste procedimento por parte do Governo Federal?

A História é inimiga deste governo. Este governo, nascido do golpe dado contra a Presidenta Dilma Roussefem 2016 (sim, leitor, foi um Golpe de Estado, não adianta espernear contra as evidências surgidas nos últimos meses sobre como ele se deu e sobre seus porquês, o que remete ao governo e às agências oficiais norte-americanas, a entidades privadas da mesma origem, a setores do nosso judiciário e aos comandos e à boa parte de nossas Forças Armadas), teve como um de seus motivos uma disputa pela memória histórica.

Qual foi ela? A chamada Comissão da Verdade, instituída pela Presidenta Dilma Roussef, iniciativa não digerida pelos militares. E por quê? Eles não querem aceitar que o Golpe de 1964 foi um Golpe de Estado clássico, que a Ditadura militar-empresarial, que durou de 1964 a 1985, foi uma DITADURA e, por conseguinte, censurou, cerceou as liberdades individuais, matou, torturou, desapareceu com corpos, violou leis, sumiu com documentos, promoveu grande corrupção etc.

O discurso do Presidente Bolsonaro marca-se por este negacionismo, que tem origem no incômodo dos nossos militares com as verdades inegáveis sobre o que se passou tempos atrás. Aliás, está na hora do Brasil livrar-se da tutela política das Forças Armadas. As Forças Armadas são, sim, necessárias, mas para a preservação da soberania nacional, para a defesa quanto a possíveis ameaças externas. Não lhes cabe qualquer ingerência em assuntos políticos internos:militares nos quartéis, em defesa da soberania nacional!

O senhor vê possibilidades de correlação do cenário anterior, contemporâneo e imediatamente posterior à independência do Brasil com o cenário que vivemos hoje?

Os cenários são muito diferentes. Mas vamos tentar fazer algumas comparações. No balanço, estamos tristemente numa situação pior.

Em 1820-1823, saíamos do Antigo Regime, de uma monarquia absoluta, de uma sociedade fundada na desigualdade jurídica entre seus membros e na instituição malsã chamada escravidão. Saíamos rumo a uma ordem constitucional, liberal. Se a “filosofia” das nossas elites, como disse acima, foi “mudar para deixar tudo como estava”, é inegável que houve avanços políticos. O liberalismo era um liberalismo com faceta política, capaz até mesmo de fazer algumas inclusões, de que é exemplo a concessão de cidadania parcial para os alforriados, estabelecida pela Constituição outorgada de 1824. Leitores e leitoras, prestem bem atenção: essa concessão localizada não eliminou o caráter social excludente de nossa ordem monárquica, fundada na escravidão. Aliás, esse caráter também não foi eliminado pela República, desde seus princípios até o presente momento.

Hoje, vivemos um movimento que tem o sentido contrário. Sob um ordenamento político constitucional, republicano, uma Constituição moderna, a de 1988, assistimos a um movimento, capitaneado pelo sr. Presidente da República, pelos seus generais, pelos milicianos e pelas hordas imbecilizadas e fascistas que o apoiam, no sentido de voltar para trás. Desde a ascensão de Michel Temer é isso que estamos assistindo: um retrocesso sem igual. Temer, Bolsonaro e Paulo Guedes conseguiram fazer o que o PSDB tentou fazer sem sucesso: enterrar a herança positiva, da legislação trabalhista, deixada por Getúlio Vargas. No fundo, nossas elites querem uma ordem muito similar ao 13 de maio de 1888.

Por tudo isso, digo: já passou da hora de nos movimentarmos para recuperarmos o que foi perdido. O Brasil é um país em ruínas, com cerca de 600 mil mortos vítimas da COVID19 (e que, em boa parte, poderiam estar vivos, se não fosse esse governo negacionista, fundado na ignorância, no negacionismo científico e no negacionismo histórico).

Enfim, d. Pedro e nossas elites meridionais de 1821-1823, com as devidas diferenças de contexto, foram mais progressistas que o atual Presidente da República e seus generais! Que fique, aqui, registrada essa provocação! D. Pedro foi capaz de reconhecer que o passado colonial, em boa parte sob o domínio de sua dinastia, foi de despotismo. Nossos militares não conseguem reconhecer com humildade seus erros, e o Presidente da República chega a cultuar como ídolo um militar psicopata que se tornou célebre por seus atos de tortura, inclusive colocando ratos em vaginas das torturadas (é chocante, leitores, mas é a verdade; verdade conhecida por nossas elites, que aceitam Bolsonaro como uma espécie de capitão do mato a seu serviço, sempre pronto a sustentar uma ordem social excludente).