A vida de negras e negros na UFMG
Rodas de conversa e atividades culturais compuseram a programação da 1ª Semana Negra do APUBH
Reunir a comunidade acadêmica da UFMG para debater a presença e a resistência de negras e negros na universidade. Essa foi a proposta da 1ª Semana Negra do APUBH, promovida pelo sindicato entre os dias 26 e 29 de novembro.A semana contou com uma programação variada, incluindo atividades artísticas e culturais. Houve ainda espaço para conversas livres e democráticas sobre a existência e a resistência de afrodescendentes na universidade. Os debates ficaram por conta de membros da comunidade acadêmica – docentes, técnico-administrativos e estudantes de graduação e pós-graduação
O evento foi aberto com a performance “Eu”, do artista Led Marques. O artista utilizou a performance para retratar o processo de reconhecimento de um jovem negro periférico a partir de sua inserção no Movimento Hip Hop. Em seguida, foi discutida a inserção de discentes negros na Educação Superior, em palestra da professora Shirley Miranda(FAE/UFMG).
Ocupar a universidade
O segundo dia da semana contou com a realização da roda de conversa“O negro na universidade e a conjuntura atual”.O tema foi debatido pelo professor Carlos Roberto Horta (DCP/FAFICH) e pelaprofessora Rosy Mary dos Santos Isaias (ICB). Também houve a presença do ex-reitor da UFMG (1994-1998) e presidente da OAP/UFMG Tomaz Aroldo da Mota Santos.A atividade foi realizada na tarde de quarta-feira (27/11), no Auditório 2 da Faculdade de Ciências Econômicas – FACE/UFMG.
“Não é possível compreender o racismo sem pensar a escravidão”, refletiu o professor aposentado Tomaz Aroldo da Mota Santos. O presidente da OAP refletiu que, historicamente, a distinção racial foi criada para justificar que seres humanos fossem escravizados. E, como consequência, contribuiu para a edificação do racismo estrutural em nossa sociedade.
E essa estrutura começa a ruir, através da luta e das conquistas dessas pessoas. Em sua experiência, como um afrodescendente de origem humilde que assumiu a gestão de uma das maiores universidades do país,o professor acompanhou e serve de exemplo dessa mudança. Certa vez, ele recordou, uma estudante lhe agradeceu por servir de inspiração: “Professor, obrigado por existir”.
Os participantes da roda de conversa discutiram a importância de ações afirmativas para a inclusão e permanência de afrodescendentes no meio acadêmico. E, por outro lado, apontaram que as estruturas que sustentam a discriminação na sociedade tendem a reagir a essas mudanças. A conjuntura sociopolítica atual é um reflexo dessa tendência reacionária, como observou a professora Rosy Mary dos Santos Isaias. “Esse é justamente o momento em que nós devemos nos unir, discutir bastante e deixar claro o lugar que nós ocupamos na sociedade, que é um lugar que nos cabe”, analisou.
“Na medida em que trazemos a população negra para a universidade, e essa população começa a ter acesso a uma educação de qualidade e a espaços mais plurais, nós vamos naturalmente ocupar espaços superiores – acadêmicos, científicos e culturais. Isso vai incomodar, mas é necessário e nós estamos aqui para ocupar esses espaços”, completou Rosy Mary.
Ampliar o lugar de fala
“Ser negro, ser negra, na UFMG” foi o tema de mesa redonda na manhã de quinta-feira (27/11), no Auditório 2 da Faculdade de Ciências Econômicas – FACE/UFMG. O encontro teve a participação dos estudantes de graduação Alisson Teixeira (Filosofia) e Mariana Romão (Ciências do Estado), dos pós-graduandos Bruno Henrique de Paula e Neusa Pereira (FaE), da professora Kleyde Ventura de Souza (Enfermagem) e dos técnico-administrativos Yone Gonzaga (Odontologia) e Adalgimar Gomes Gonçalves (Prograd/Reitoria).
Os presentes compartilharam experiências pessoais de como são as vidas de afrodescendentes na universidade. A superação e o orgulho de conquistar um espaço na academia se misturam com casos de discriminação. A luta pela sobrevivência faz parte da rotina, assim como a emoção de se perder uma pessoa próxima, como um parente ou um amigo.
Em sua vivência acadêmica e profissional, aprofessora e enfermeira Kleyde Ventura de Souzapercebeu que a consciência de classe pode ser o ponto de partida para compreender e interagir com a realidade. A professora enxerga que espaços de discussão, como o promovido na Semana Negra do APUBH, são meios de interação que contribuem para discutir a questão racial no país e para que possamos influir na estrutura da sociedade.“Do lugar de fala para o lugar de representatividade, do lugar de representatividade para ampliar o lugar de fala”, definiu.
Os negros na literatura, a literatura escrita por negros
Compondo a programação na tarde do dia 28 de novembro, a professora Telma Borges (FaE) apresentou um estudo comparado dos autores do século XIX José de Alencar e Luiz Gama. A professora iniciou sua apresentação celebrando a realização da Semana Negra, como uma oportunidade de debater o local da população negra dentro da UFMG. “Todos os começos jazem na sombra. Precisamos tirar a universidade dessa sombra”, disse Telma.
Sua investigação buscava identificar como o negro era representado na literatura por um branco (no caso de Alencar) e por um negro, com Luiz Gama. Além disso, com base no contexto histórico dos autores, que eram contemporâneos entre si, a literatura pode atuar como reveladora das condições da população negra no Brasil do século XIX, jogando luz nas relações sociais e de luta da época.
Em sua análise, Telma identificou que os discursos que permeavam a fase sertanista de José de Alencar indicavam que a escravidão era “necessária para a evolução” do país, algo que ele já havia defendido em sua atuação como político. Em seus escritos, negros escravizados eram retratados como submissos e dóceis, enquadrando a escravidão como benéfica. Além disso, apontava que a população negra deveria ser “civilizada” através da promoção de ações de “branqueamento”, uma forma de ação eugênica.
Já Luiz Gama, advogado, poeta e ainda pouco conhecido no país, falava da aceitação da própria existência como negro, notoriamente no poema “Quem sou eu”, que expõe o forte preconceito da sociedade da época. Filho de mulher negra livre, Gama foi vendido pelo pai e lutou pela própria liberdade. Durante sua atuação como advogado chegou a libertar cerca de 500 escravos; como jornalista promoveu a causa abolicionista e se opôs a ideia de “branqueamento” da sociedade brasileira.
Finalizando a exposição, a professora Telma explicou que, enquanto Alencar buscava justificar a necessidade da escravidão, Gama buscou mostrar a realidade do escravo. Assim, usando seu lugar de enunciação, Gama promoveu um “outro olhar” e deveria ser recuperado, para que não exista “o perigo de uma história única”.
E à noite foi promovida a Oficina de Slam Afrolíricas, com Rogério Coelho, Anárvore, Eliza Castro e Izabela Reis. Por meio da arte e da cultura, o objetivo foi ensinar a construir rimas, como forma de refletir a realidade da juventude negra periférica. A atividade foi realizada Território Freiriano, na Faculdade de Educação – FaE/UFMG.
Encerramento
No dia 29/11, foi realizada a apresentação “Processo mau-olhado bem olhado: oração sobre nossas águas”, por Janaina Barros e Wagner Leite Viana, ambos da Escola de Belas Artes – EBA/UFMG. A atividade ocorreu, no Auditório Luiz Pompeu de Campos da Faculdade de Educação – FaE/UFMG e encerrou as atividades da 1ª Semana Negra do APUBH. A videoperformance apresenta os corpos feminino e masculino negros numa interação que reflete os afetos e sua dimensão política na formação da família negra em diáspora. Buscando elementos do discurso religioso, procura-se apresentar um questionamento do corpo como lugar possível de liberdade.