Nossa misoginia de todo dia*
Nísia Trindade não é apenas uma ministra destituída do cargo, mas alguém que representa as instituições de ensino e pesquisa do país.
Na segunda-feira, dia 10 de março, portanto, dois dias após as mobilizações e manifestações em defesa dos múltiplos aspectos que deveriam ser reconhecidos como direitos das mulheres, somos lembrados e lembradas das lutas ainda a serem travadas, através do discurso da pesquisadora Nísia Trindade proferido em sua despedida do Ministério da Saúde (MS).. Embora muitos de nós tenhamos compartilhado a insatisfação com a decisão do governo federal em substituir a Ministra, pouco fizemos para reverter essa situação e sabíamos, em grande medida, que não se tratavam de justificativas plausíveis e coerentes, mas, sobretudo, derivada de uma estratégia discursiva vazia, lacunar e rasa em relação à sua atuação no cargo, reforçada por determinados campos políticos.
Já tivemos um exemplo de como a misoginia esteve presente ou mesmo orientou o golpe contra a presidenta Dilma. Deveríamos ter aprendido ou, ao menos, nos tornado mais intolerantes a esse tipo de conduta das instituições e instâncias políticas.
Mas, assim como Dilma, Nisia não se calou e muito menos se acovardou diante de um ato político extremamente violento. Não é exagero assim dizer. Nos coloquemos em seu lugar, mesmo que de forma limitada: uma mulher, com uma trajetória brilhante e, sobretudo, de reconhecida importância para as instituições públicas do país, é convidada a ocupar o cargo de ministra da saúde de um governo que se coloca frontalmente opositor ao discurso negacionista e às inúmeras práticas de deslegitimação das instituições científicas. É preciso frisar: a primeira mulher a ocupar esse cargo. Passa, portanto, a implicar e direcionar todos os seus esforços em reconstruir um ministério e aqui temos que fazer um exercício imaginativo do que foi sentar na cadeira anteriormente ocupada por Pazuello. Ela se organiza, trabalha diuturnamente, faz opções, inclusive pessoais, para se dedicar a um projeto de governo e no caso dela, sem dúvida, a um projeto de país que muitos e muitas de nós sonhamos e que, de certa forma, temos a vontade de contribuir. Não é preciso criar suposições ou buscar explicações ao que se desenrola depois disso. Suas palavras são suficientes: “Não posso esquecer que durante os 25 meses em que fui ministra uma campanha sistemática e misógina ocorreu de desvalorização do meu trabalho, da minha capacidade e da minha idoneidade”. Talvez alguém possa nos ajudar a entender outros aspectos que levaram a decisão por sua demissão. Mas, todos os “mas” nos soam injustificáveis.
Não tínhamos o que fazer? Não sabemos responder. Fomos infiéis a ela e, sobretudo, às instituições de ensino e pesquisa desse país ao ver uma pesquisadora e intelectual pública ser destituída de um espaço de poder? Assistimos de certa forma passivos, repostando fotos, dizendo nas entrelinhas que não estávamos de acordo, mas concordando que era o “mal necessário” e dando boas vindas ao novo ministro, considerando sobretudo, sua experiência política.
Nísia provavelmente já estava acostumada com o cotidiano misógino das instituições, inclusive daquelas que se orientam pela perspectiva democrática e socialmente referenciada. Não deve ter sido fácil ocupar o cargo de primeira mulher presidente da Fiocruz. Mas ela mesma nos lembra que não é possível naturalizar essa violência cotidiana que nós mulheres vivenciamos nas dinâmicas das instituições.
Como ela nos diz: “Não é possível e não aceito e acho que não devemos aceitar como natural o comportamento político dessa natureza. Podemos e devemos construir uma nova política baseada efetivamente no respeito, e destaco, o respeito a nós mulheres e no diálogo em torno de propostas para melhorar a vida de nossa população”.
Se não foi possível conter ou reverter uma decisão misógina – é preciso enfrentar e dizer explicitamente isso – ela, assim como tantas outras mulheres que ocupam as universidades e instituições de ensino e pesquisa foram e são aviltadas pela violência de gênero. Fatos que nos fazem lembrar e fortalecer a nossa luta para que, um dia, possamos efetivamente reconhecer as desigualdades, sonhar com melhores condições de exercício do trabalho, e termos a possibilidade de vivenciar aquilo que não se pode resumir apenas aos discursos e gestos lembrados a cada 8M.
*Verona Segantini, professora da Escola de Belas Artes, secretária-geral da diretoria Executiva do APUBH e coordenadora do Núcleo de Acolhimento e Diálogo (NADi/APUBH)