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Pnaes, 10 anos: direito dos estudantes, democratização das Ifes

Fonte: UFMG

Vice-reitor e pró-reitores descrevem os resultados da política que ajudou a transformar o perfil do corpo discente da UFMG

No dia 19 de julho, o Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes) completou 10 anos. Há uma década, era publicado o decreto 7.234, assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo ministro da Educação, Fernando Haddad. O ato foi resultado de luta histórica do movimento estudantil nas universidades em defesa do direito à assistência, assumida também pelo Fórum Nacional de Pró-reitorias de Assuntos Estudantis (Fonaprace), vinculado à Associação Nacional de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).

O tempo histórico oferece a oportunidade de compreender e dimensionar o impacto do Pnaes para expressiva parcela das juventudes e para as universidades federais brasileiras – o que faremos tomando a UFMG como referência. A experiência e as estatísticas mostram que o Programa, executado pelo Ministério da Educação, contribuiu decisivamente para expandir a democratização do ensino superior, ao garantir a permanência de jovens em situação de vulnerabilidade oriundos de famílias de baixa renda. Praticamente ausentes ou invisíveis até então, eles representam hoje na UFMG mais da metade de seu corpo discente. Trata-se de uma revolução estrutural com repercussões também na vida acadêmica.

O que estabeleceu o programa há uma década? Primeiro, definiu seu público de destino: “serão atendidos no âmbito do Pnaes prioritariamente estudantes oriundos da rede pública de educação básica ou com renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio” (art. 5). Para contemplar esse público, quatro objetivos foram definidos: democratizar as condições de permanência dos jovens na educação superior pública federal, minimizar os efeitos das desigualdades sociais e regionais na permanência e conclusão da educação superior, reduzir as taxas de retenção e de evasão e contribuir para a promoção da inclusão social pela educação (art. 2). Sua implementação foi organizada para ser “articulada com as atividades de ensino, pesquisa e extensão, visando ao atendimento de estudantes regularmente matriculados em cursos de graduação presencial das instituições federais de ensino superior” (art. 3), com ações de assistência estudantil em dez áreas: moradia estudantil, alimentação, transporte, atenção à saúde, inclusão digital, cultura, esporte, creche, apoio pedagógico e acesso, participação e aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação. Nesse movimento, o propósito de “considerar a necessidade de viabilizar a igualdade de oportunidades, contribuir para a melhoria do desempenho acadêmico e agir, preventivamente, nas situações de retenção e evasão decorrentes da insuficiência de condições financeiras” (art. 4).

O Pnaes antecedeu e abriu caminho para outras três medidas, a ele articuladas, que configuraram, com o Programa, um quarteto de políticas que garantiram o acesso e a permanência nas Ifes de novos sujeitos, vindos de população historicamente excluída da educação superior pública federal, todas implementadas na presidência de Dilma Roussef: 1) a promulgação da Lei 12.711, de agosto de 2012 (a ‘Lei de Cotas’), que estabeleceu reserva de 50% das vagas dos cursos de graduação da UFMG para egressos do ensino médio público, sendo metade da reserva necessariamente direcionada para estudantes de baixa renda, havendo ainda o requisito de que se preserve, em cada caso, a proporção de estudantes autodeclarados negros (pretos ou pardos) e indígenas equivalentes àquela observada no último censo populacional do Estado; 2) a Portaria Normativa 21 do MEC, de novembro de 2012, que reorganizou o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) para seleção de estudantes a vagas em cursos de graduação das instituições públicas e gratuitas de ensino superior que a ela aderissem, com base nos resultados obtidos por estudantes no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem); 3) a Lei 13.146, de julho de 2015, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que se desdobrou na Lei 13.409, de dezembro de 2016, que dispõe sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência nas Ifes em proporção respectiva à população de pessoas com deficiência na unidade da federação onde está a instituição, também observando o censo do IBGE.

Esse quarteto de políticas públicas levou a UFMG a experimentar, na última década, uma reconfiguração de seu corpo discente: novos sujeitos chegaram e aqui ficam o tempo necessário para realizar seu direito ao ensino superior. A UFMG acolhe e inclui hoje mais de 7,5 mil estudantes em suas políticas de assistência estudantil, de ações afirmativas e de apoio acadêmico, elaboradas e coordenadas pela Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (Prae) e executadas em parceria com a Fundação Universitária Mendes Pimentel (Fump). E, para realizar essas políticas, a Prae mobiliza predominantemente recursos do Pnaes, complementados com outros investimentos da própria UFMG.

Quem são esses e essas estudantes? Que desejam na UFMG? Que experiências trouxeram para cá? Não se trata de perceber apenas o aumento no número desses estudantes. É bem mais significativa a experiência: é a instigante diversidade de estudantes que agora povoa a UFMG, circulando por seus campi, por suas alamedas, por seus institutos e por suas faculdades na concretização de seu direito à educação superior. Na UFMG de 2020, estão estudantes de todas as etnias que compõem o povo brasileiro, de gêneros, idades e condições econômicas distintas, de diferentes crenças ou ateus, com deficiência, com orientações sexuais variadas. Estudantes em posse de seus corpos, expandindo na Universidade as suas histórias de vida, realizando o que é também seu direito: formar-se em uma universidade federal.

Quem são esses e essas estudantes? Que desejam na UFMG? Que experiências trouxeram para cá? Não se trata de perceber apenas o aumento no número desses estudantes. É bem mais significativa a experiência: é a instigante diversidade de estudantes que agora povoa a UFMG, circulando por seus campi, por suas alamedas, por seus institutos e por suas faculdades na concretização de seu direito à educação superior.

Dez anos depois, estatísticas geradas pela Pró-reitoria de Graduação (Prograd) sobre estudantes matriculados na UFMG, no período de 2009 a 2018/1, mostram que, hoje, mais da metade de estudantes da UFMG cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas. Há dez anos, eram 31%. Aqueles e aquelas que se declaram negras são 49,3%, praticamente o dobro do registrado em 2008 (26,75%). São 57% os estudantes da UFMG que têm renda familiar total de até cinco salários mínimos, quase o dobro também do índice de 12 anos atrás, em 2008, quando eram 30%. Também houve crescimento de matrículas de estudantes com renda familiar de um a dois salários mínimos: em 2014, correspondiam a 11,4% do total, e em 2018, a 18,2%, presentes em todos os cursos, inclusive em formações mais “tradicionais”, como Medicina e Direito.

Por outro lado, se, em 2008, havia 44% de estudantes com renda familiar acima de 10 salários mínimos, hoje são 20%, menos da metade. Atualmente, apenas 5% de estudantes da UFMG vêm de famílias com renda total acima de 20 salários mínimos (eram 14%, em 2008). O aumento do número de estudantes cujos pais e mães não concluíram o curso superior e daqueles cuja renda familiar está entre um e dois salários mínimos reforça a importância das políticas de acesso e permanência no ensino superior, como são o Pnaes e a Lei de Cotas.

Depois da adesão ao Sisu, a UFMG passou a receber número maior estudantes de todos os estados brasileiros (exceto, ainda, o Acre). Hoje, 12% de nosso corpo discente é formado por pessoas de fora de Minas Gerais. Outros 25% vêm do interior de Minas, e menos de 55% são aqueles que nasceram em Belo Horizonte.

Os números falam. Eles dizem que a UFMG passou a acolher novos sujeitos em suas 95 modalidades de cursos de graduação, vindos de população raramente incluída na educação superior: negros, pardos, indígenas, quilombolas, trabalhadores(as) que não tiveram o direito à escolarização em idade regular, pessoas com deficiência, estudantes socioeconomicamente vulneráveis e em risco social e cultural. Aos 93 anos, a UFMG 2020 é, enfim, expressão do Brasil. Eles e elas estão aqui. O Pnaes é, desde 2010, uma das políticas responsáveis por essa transformação.

Eles e elas chegaram, entraram, e a força de suas presenças mudou a UFMG. E a UFMG mudou para estar e envolver-se com eles e elas. Outras práticas de sociabilidade, outras experiências estéticas entre pessoas de rica diversidade cultural ganharam lugar na Universidade, a enriqueceram e a levaram a se pensar e a se reinventar. Que desdobramentos podem ser sentidos na UFMG?

Aos 93 anos, a UFMG 2020 é, enfim, expressão do Brasil. Eles e elas estão aqui. O Pnaes é, desde 2010, uma das políticas responsáveis por essa transformação.

Uma de muitas consequências foi a criação da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis, em 2014, para coordenar as políticas de assistência estudantil, de ações afirmativas e de apoio acadêmico. A criação do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI), em 2015, e da Comissão Permanente de Ações Afirmativas e Inclusão (CPAAI), em 2018, foram outros desdobramentos. Resoluções importantes foram produzidas na UFMG nesse ambiente acadêmico em configuração: a que extingue os trotes (2014), a que autoriza o uso do nome social (2015), a dos Direitos Humanos (2016) e a de reserva de vagas para estudantes negros, indígenas e com deficiência para os programas de pós-graduação (2017).

Havia, no entanto, uma questão pairando no ar. Ela dizia respeito ao rendimento acadêmico desses/as estudantes. Os que defenderam o critério da “meritocracia” para o ingresso na Universidade (em confronto com o princípio do direito de todos/as a estar nela, articulado a critérios de ações afirmativas), aqueles que duvidavam da formação que tais estudantes receberam em escolas públicas pareciam antever o fracasso a que estariam sendo condenados: “não vão dar conta das exigências acadêmicas.” Muito foi dito a respeito.

Estudantes da UFMG destruíram esse mito, como mostram dois indicadores importantes da vida acadêmica, passados dez anos. O primeiro é sobre a evasão desses estudantes da Universidade, realidade que o Pnaes pretendia combater quando foi criado. O êxito dessa política é confirmado pelos dados da Prograd, que possibilitam comparar os índices gerais de evasão e os referentes aos estudantes incluídos na Política de Assistência Estudantil da UFMG, mantida com recursos do Pnaes, que ingressaram por política de reserva de vaga (a Lei de cotas) – justamente aqueles e aquelas mais vulneráveis socioeconomicamente: enquanto a evasão global da UFMG atinge 25%, o índice específico para estudantes cotistas e assistidos por ela cai para apenas 5% de evasão. Ou tratando de outra forma: o índice de permanência desses estudantes é de 95%. Um sucesso eloquente daqueles que muitos previram que seriam abandonados pela Universidade.

O que lhes faltava era o direito à universidade federal. Agora garantido esse direito, eis sua resposta: percursos acadêmicos de qualidade, fazendo jus ao investimento em sua permanência – da escola pública à universidade pública.

O segundo indicador é ainda mais potente, porque diz respeito diretamente ao rendimento acadêmico dos estudantes assistidos pela UFMG, a quem o esperado fracasso rondava. Ao contrário, veio mais sucesso. A partir de dados de ingressantes nos anos de 2013 a 2017, tem-se que, para as 95 modalidades de cursos oferecidos pela UFMG, em 74 delas (78% do total de cursos) não foi detectada diferença estatisticamente significativa no Rendimento Semestral Geral médio entre estudantes que ingressaram na ampla concorrência ou nas modalidades de cotas (negros, pardos, indígenas, deficientes, em sua maioria vindos de escolas públicas).

O real aí está: novos sujeitos ingressaram na UFMG e nela realizam com todo o empenho acadêmico a sua formação, assumindo e “dando conta” de sua travessia. O que lhes faltava era o direito à universidade federal. Agora garantido esse direito, eis sua resposta: percursos acadêmicos de qualidade, fazendo jus ao investimento em sua permanência – da escola pública à universidade pública. Hoje, a UFMG tem uma população estudantil mais próxima do que é a população brasileira – estudantes que fazem o Pnaes ser um sucesso como política pública, mesmo que seu orçamento ainda seja em nível abaixo do necessário.

Mas o Pnaes corre sério risco: ainda é um decreto e, como tal, pode ser extinto a qualquer momento, a depender da vontade política de quem ocupe a Presidência da República. Precisa, para consolidar-se, ser estabelecido como Lei pelo Congresso Nacional, configurando-se como “política de Estado”, estável e perene. Essa é uma das lutas para expandir o direito de estudantes em situação de vulnerabilidade à permanência nas universidades brasileiras.

Alessandro Fernandes Moreira, vice-reitor da UFMG
Licinia Maria Corrêa, pró-reitor adjunta de Assuntos Estudantis da UFMG
Tarcísio Mauro Vago, pró-reitor de Assuntos Estudantis da UFMG