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O canto dos galos na Argentina e no Chile, por Leonardo Avritzer

Fonte: Jornal GGN.

Cabe no nosso caso uma adaptação da famosa frase de Marx: o colapso do neoliberalismo no Brasil será anunciado pelo canto dos galos argentinos e chilenos.

Foto: Reprodução.

Agnes Heller, a intelectual húngaro americana recentemente falecida, dizia que a modernidade constitui um pêndulo entre mercado e Estado. Certos momentos da modernidade consistiram em fortes desenvolvimentos do mercado que mostrou, no entanto, em cada um deles, sua limitação enquanto forma única de organização da sociabilidade. Foram esses momentos que geraram o seu contrário, uma estrutura de proteção social garantida pelo Estado capaz de relativizar a mercantilização.

A estrutura de proteção social que se generalizou na Europa depois da segunda guerra mundial foi a resposta do mundo capitalista e democrático à primeira tentativa de atacar as formas de organização coletiva e deixar a sociedade à mercê do mercado, uma das maneiras de entender o nazi-fascismo. A derrota do nazi-fascismo gerou estruturas de proteção social em todas as partes do mundo, limitou as relações regidas pelo mercado e criou uma sensação de estabilidade que permitiu a expansão da democracia para além de um número pequeno de países.

O período que abrange os últimos trinta anos representa uma tentativa de mercantilização radical de todas as relações sociais, até mesmo da proteção social na velhice, que passa a ser regida por um princípio mercantil pela primeira vez na história do capitalismo. O neoliberalismo é a tentativa mais radical de ruptura com o princípio pendular da modernidade de alternar Estado e mercado em busca de certo equilíbrio.

Podemos dividir o neoliberalismo em duas fases: em uma primeira, ele apenas apontou para os abusos de uma forma de burocratização das relações socais e tentou reequilibrá-las com a reintrodução de um princípio mercantil mais forte. Mas, ao final dessa primeira fase, o princípio foi expandido para as instituições internacionais, tais como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), tornando-se uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos que insistiram em certa presença do Estado na economia e na organização social.

A partir da internacionalização do neoliberalismo, passamos a contar com um tipo diferente de Estado que podemos denominar de “Estado ardiloso”, um Estado que é, ao mesmo tempo, forte e fraco. Forte para defender os interesses da “financeirização”, mas fraco na defesa da sociedade. Esse período chega ao fim em 2008.

O resgate do sistema financeiro internacional realizado em 2008 – e, principalmente, a forma como esse resgate ocorreu: às expensas dos cidadãos endividados com os mesmos bancos nos Estados Unidos e na Europa – marca uma mudança de fase no neoliberalismo. Tal mudança é significativa por dois motivos.

Em primeiro lugar, o fato de que os Estados do mundo desenvolvido optaram por seus bancos e não por seus cidadãos no momento em que centenas de milhares de americanos perdiam suas casas e milhões de europeus, em países como a Espanha e Portugal, seus empregos, sinaliza uma mudança na forma de organização das democracias cujas consequências estamos vendo nesta década.

O segundo elemento é ainda mais problemático e está ligado ao fato de que nenhuma autocrítica sobre o programa de desregulamentação e diminuição do Estado foi realizado pelas forças neoliberais depois da rápida recuperação dos bancos e do sistema financeiro, sobretudo nos EUA. Pelo contrário, o que assistimos depois de 2008 foi uma radicalização do neoliberalismo.

Tal radicalização, na qual o mercado atacou a estrutura estatal que o resgatou do desastre, aponta para um elemento não moderno ou antimoderno no neoliberalismo. Ele pretende romper com a ideia de um equilíbrio reflexivo entre Estado e mercado e implantar o domínio completo das relações mercantis em relação à política. O problema é que a voracidade do ataque neoliberal ao Estado torna-o não apenas uma doutrina antiestado, mas uma doutrina antissociedade, que tem levado às revoltas contra o neoliberalismo em diferentes países.

Brasil e Chile têm trajetórias completamente distintas em relação ao neoliberalismo. O Brasil foi o caso mais exitoso de “nacional desenvolvimentismo” na América Latina enquanto o Chile é um caso de destruição do “nacional desenvolvimentismo” pela força de uma ditatura cruel. A recessão imposta pela política econômica de Pinochet destruiu a indústria e acabou por eliminar os atores que poderiam constituir a base de um novo pacto político. Na transição para a democracia, Pinochet foi ainda capaz de propor um modelo eleitoral que garantiu à direita chilena uma sobre representação política e, especialmente, uma capacidade de veto sobre mudanças constitucionais.

É isso que explica a incapacidade da “concertación”, a aliança política que governou o Chile ininterruptamente até o primeiro governo Piñera, de realizar mudanças importantes na área da educação e do sistema de aposentadoria. Isso resultou em uma inscrição do neoliberalismo no sistema constitucional chileno que os governos de esquerda foram incapazes de mudar. É por esse motivo que os chilenos pedem uma Constituinte ou, pelo menos, uma revisão constitucional. Porque eles têm uma constituição antissocial feita por uma ditadura neoliberal.

O Brasil é um caso diferente, uma vez que o país teve uma democratização mais radical e mais orientada socialmente. A Constituição de 1988, promulgada cerca de um ano antes do colapso do socialismo real, ocorreu em um período no qual o neoliberalismo ainda não estava firmemente implantado na região. Assim, ela seguiu uma lógica de reversão das desigualdades geradas pelo período autoritário.

Nem mesmo o governo Fernando Henrique Cardoso seguiu estrito senso a cartilha neoliberal. Ele manteve toda a estrutura financeira estatal: do BNDES ao Sistema de Financeiro de Habitação (SFH). O mesmo pode se dizer do governo Lula que manteve a estrutura estatal do sistema financeiro e ampliou a presença do Estado na área de energia. Desde 2012, com a ruptura do pacto entre o governo Dilma Rousseff e o sistema financeiro, o que vimos foi uma mudança radical de postura do mercado.

Ele passou, de uma posição adaptativa aos desígnios do sistema político, para uma posição de estabelecimento de uma hegemonia antiestatal a qualquer custo. Esse fato explica em parte o apoio ao impeachment e à eleição de Jair Bolsonaro. Importantes economistas neoliberais no Brasil anunciaram recentemente a morte do pacto político gerado pela Constituição de 1988, a mesma que está sob ataque aberto por parte do governo Jair Bolsonaro.

O Brasil, no entanto, enfrenta o mesmo dilema que o Chile: não é possível implantar a agenda neoliberal sem atacar radicalmente, não apenas o Estado, mas também a sociedade. Foi isso que vimos na proposta original de reforma da previdência enviada pela equipe de Paulo Guedes: ataques a todos os benefícios sociais da população mais pobre inclusive ao BPC e à aposentadoria rural. Felizmente, o Congresso derrubou esses componentes da proposta.

O neoliberalismo a la chilena implica em atacar a sociedade para diminuir o peso do Estado e das políticas sociais na economia. É essa a disputa política do momento em toda a América do Sul. A entrada tardia do Brasil nesse jogo é ainda mais problemática porque não é claro que ele ainda está sendo jogado pelas principais forças internacionais da globalização, em especial pelos Estados Unidos, neste momento engajado em uma guerra protecionista contra a China.

Por outro lado, aplica-se sim ao Brasil a mesma característica econômica que as políticas econômicas neoliberais têm no Chile e na Argentina: a associação entre desindustrialização e estagnação econômica de longo prazo. É essa associação que obriga o neoliberalismo a atacar a sociedade de forma tão perversa. Em uma semana na qual o neoliberalismo causa revolta social no Chile e é derrotado eleitoralmente na Argentina, cabe no nosso caso uma adaptação da famosa frase de Marx: o colapso do neoliberalismo no Brasil será anunciado pelo canto dos galos argentinos e chilenos.

*Leonardo Avritzer é professor de ciência política na UFMG.