Especialistas questionam projeções de Bolsonaro para a Educação
Postado em 3/11/20, em Notícias
Fonte: Carta Capital
Governo publicou decreto que institui a estratégia federal de desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031
O decreto apresenta projeções de cenários econômicos para cada área do País, um chamado referência e outro transformador e, na visão menos otimista, aposta em um crescimento anual médio de 2,2% no Produto Interno Bruto (PIB) e um PIB per capita de 19,1% em 2031. As projeções vão na contramão do observado até aqui. Cálculos feitos pela Consultoria LCA apontam que, de 2013 – último ano de crescimento robusto da economia – até 2020, o País encolheu 11,3% de seu PIB per capita.
Na educação, o decreto aposta em melhorias de índices educacionais tais como Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), e aumento da porcentagem de estudantes que concluem o Ensino Fundamental. Com o Ideb, por exemplo, que tem taxa de 5,8 nos anos iniciais do Ensino Fundamental, o governo propõe alcançar 7,2 em 2031, e 7,9 em um cenário mais amplo de reformas.
Para o professor José Marcelino de Rezende Pinto, da USP, pesquisador em financiamento da educação, as projeções são irreais em um contexto de falta de mais recursos na educação: “Falar em melhorar nota do PISA e o IDEB sem melhorar a qualidade da educação, o que implica em investimentos, é o mesmo que querer tirar o corpo do chão puxando os próprios cabelos”.
“A previsão de recursos por aluno do Fundeb para 2020, que deve cair em função da pandemia, é de um valor mínimo (9 estados) para os anos iniciais do Ensino Fundamental de 304 reais/mês. Só Roraima e Rio Grande do Sul apresentam valores um pouco acima de 400. Quanto custa uma escola privada considerada de qualidade? Pelo menos 1.500/mês. Na Coreia do Sul, em valores padronizados pelo dólar internacional, o gasto aluno é o triplo do Brasil. Na lista do OCDE, o Brasil é o que pior paga seus professores. E qualidade da educação, isso é consenso, é qualidade dos professores. Como melhorar IDEB e PISA sem valorizar os profissionais da educação?”, questiona.
A questão orçamentária, explica Marcelino, também será determinante para conter o cenário de evasão que deve piorar com a pandemia. “O Brasil tem apresentado um aumento incremental nos concluintes do Ensino Fundamental há décadas, contudo, os efeitos da pandemia abrem um cenário de incertezas. Qual será o seu impacto na evasão no Ensino Fundamental e Médio? Tudo depende de política de investimento na educação pós-pandemia, o que não tem acontecido”.
Mesmo no auxílio emergencial destinado aos estados e municípios para compensar a perda das receitas, ou seja, queda de impostos que destinam 25% para o ensino, não houve preocupação de vincular parte de seus recursos, descontada a parte carimbada para a saúde, para a educação (deveria ser no mínimo 25%), diz Marcelino: “A perda acumulada no Fundeb está em 6%, mas deve ser maior com o fim da ajuda dos 600 reais, pois esse fundo depende muito do ICMS, que depende do consumo. E o pior, a base é 2019, que teve a mesma receita de 2014 em valores atualizados!”.
O gráfico a seguir mostra a evolução das despesas federais:
O professor ainda explica que, para que o País consiga alcançar um cenário econômico mais promissor, precisa efetivar uma política de crescimento econômico inclusiva e distributiva. Isso envolveria investimentos fortes em políticas estruturantes, reforma agrária, crédito barato para micro e pequenos produtores, por exemplo, e em educação, dado o seu potencial de retorno social e individual e a capilaridade dos gastos.
“São mais de 4 milhões de trabalhadores da educação espalhados em todo o País. A experiência de 29 mostrou que é na crise que o Estado deve investir: esse foi o caminho da Europa e dos EUA que deu certo e mesmo o Brasil, pós-crise 2009, revertida posteriormente com as políticas recessivas de fins de 2014, com Levy, em diante. Vivemos o pior dos mundos: o governo corta na carne, com exceção aos militares, mas o PIB cai mais que a queda nos gastos e nossa dívida frente ao PIB aumenta. Quando se analisa a receita do Fundeb, fica evidente o impacto positivo que os R$ 600 tiveram para minorar os efeitos da pandemia, mas e agora?”, indaga.
A coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, chama atenção para o fato das melhorias educacionais serem projetadas pelo governo no contexto do regime fiscal do Teto de Gastos, que limita o gasto máximo do orçamento ao ano anterior, corrigido apenas pela inflação.
“Qualquer política de qualidade para a área da educação necessita de recursos. Os que temos hoje está aquém do que é necessário, como ficou demonstrado durante a tramitação do Fundeb. Temos desafios quanto às políticas de formação e valorização dos profissionais da educação, na qualidade da educação, bem como em termos de acessos na educação infantil, na educação de jovens e adultos e em relação aos estudantes de zonas rurais, por exemplo. Isso tudo custa, é impossível o governo fazer políticas públicas para a área, com qualidade, se nos mantivermos nessa política que tem achatado o orçamento para a educação”.
Outro ponto destacado por Olavo Nogueira Filho, diretor executivo do Todos pela Educação, é o orçamento do Ministério da Educação previsto para 2021 que, além de não ter incrementos substanciais, deve ter 42% condicionados à liberação de créditos extras. “Como o governo projeta melhorias na educação diante esse cenário?”, questiona.
Análise das metas
Para Andressa Pellanda, ainda que o decreto traga pontos nevrálgicos e centrais para a política nacional, não dialoga com o arcabouço legal do País sobre educação, e que inclusive projetam metas educacionais para o País, caso do Plano Nacional de Educação, que sequer é citado: “O que vemos são ideias bastante retrógradas acerca dos direitos que se relacionam ao direito à educação”.
Olavo Nogueira afirma que o texto está mais para “palavras ao vento”: “Muito do que está ali evidencia contradições com o que o governo tem feito e não tem feito. O documento sinaliza, por exemplo, a redução de desigualdades, tema com o qual tem sido completamente omisso durante a pandemia, no sentido contrário ao que deveria ser o papel do ministério da Educação”.
“Melhorar a educação básica e o ensino superior não parece ser o objetivo do Ministério da Educação. Se a gente quer, de fato, ser um país mais desenvolvido em diferentes esferas, fato é que perdemos dois anos aí de governo Bolsonaro que vão nos custar muito caro nos próximos anos, em especial considerando o novo contexto da pandemia pelo qual estamos passando”, completa.
CartaCapital selecionou algumas metas previstas no documento e pediu para os especialistas tecerem comentários. Confira:
- implementar uma política nacional de formação inicial e continuada de gestores e técnicos, com foco na prática, valorizando aspectos motivacionais, competências interpessoais e de liderança, articulada com a promoção em bases meritocráticas
Andressa Pellanda: “O decreto dialoga com a agenda da meritocracia o tempo todo. Até fala em formação de professores, valorização de boas práticas que impulsionem o debate sobre qualidade, mas confunde qualidade da educação com desempenho. Em alguns momentos até substitui a tríade acesso, permanência, e qualidade por acesso, permanência e desempenho, o que é coerente com a agenda da meritocracia pretendida, mas que já vem sendo ultrapassada tanto pelas políticas educacionais e legislação, como pelos debates e pesquisas, de acordo com a realidade do país”.
Olavo Nogueira: “Essa coisa dos gestores, para mim, fica meio dúbia, eles estão falando de quem, dos gestores das secretarias dos estados e municípios ou dos gestores escolares? É uma redação genérica que não diz muito. O ponto central é que o ministério da educação tem pouca capacidade de incidir na estrutura de gestão das secretarias municipais e estaduais por conta da autonomia. Mas pode e deve apoiar, fundamentalmente as secretarias menores, em regiões mais pobres, do ponto de vista técnico e financeiro. Se é esse o caminho, positivo. Agora, não está clara a estratégia para fazer isso.
- melhorar a qualidade da educação básica, contempladas as condições de oferta do ensino, a gestão e organização do trabalho escolar, bem como o acesso, a permanência e o desempenho do aluno, promovendo a educação integral e a qualificação para o mercado de trabalho, na perspectiva do desenvolvimento sustentável, do respeito às diferenças e do combate às desigualdades sociais
AP: A agenda das diversidades praticamente não é citada. O que se fala é em respeito às diferenças que, no campo das pesquisas e políticas sobre diversidades, é bastante ultrapassada. A gente fala em promoção das diferenças, promoção das diversidades, uma política que vinha sendo realizada pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), também extinta pelo governo, então segue na mesma toada. Eles falam que vão fazer uma política de combate às desigualdades sociais, e não a todas as desigualdades, discriminações. Essas terminologias que são muito fortes para a agenda da política de promoção das diversidades e inclusão na educação ficam escondidas.
- promover a participação da família na educação das crianças e dos adolescentes, por meio de programas de orientação e apoio às famílias, do estreitamento das relações entre a escola e a família e do respeito aos diretos dos pais ou responsáveis pelos alunos
AP: Essa agenda de promoção das famílias na educação é de grande preocupação. A gente sabe que o conceito de família que esse governo tem é de família patriarcal, heteronormativa – mãe, pai e filho – que também é um conceito ultrapassado em termos de garantia dos direitos humanos e dos direitos LGBT. Há uma ênfase dessa família tradicional. No final desse trecho, se fala em respeito aos direitos dos pais ou responsáveis pelos alunos.
Claro que ele precisa existir, a própria Lei de Diretrizes e Bases dá escolha aos pais dos alunos para matricularem seus filhos em escolas privadas, religiosas, fora do sistema público, mas isso não significa que eles tenham a única voz ou a voz predominante na política educacional, já que ela precisa ser realizada pelo estado, em parceria com a sociedade e a família.
Isso sinaliza um possível avanço na agenda da educação familiar, o homeschooling, que é uma agenda que a própria Damares tem levantado, assim como o governo federal. Foi indicado que haveria uma medida provisória nesse sentido, que seria com certeza um retrocesso e tanto para a educação, como para a área da proteção da criança e adolescente já que, em casa, eles podem estar sujeitos a abusos, violências, e explorações de diversos tipos, muitas vezes realizados pelos próprios familiares.
ON: É mais uma redação incerta, que pode dar origem a algo razoável, mas também a questões preocupantes. De fato, há uma agenda com a qual o governo avança e preocupa ao passa que dá ênfase à escolha das famílias em detrimento de uma política educacional inclusiva, que olhe para o direito de todos. Isso pode caminhar no sentido contrário ao que as legislações brasileiras têm há muito consolidado e promover o enfraquecimento da instituição escolar.
- amplificar o acesso à prática e à cultura do esporte educacional, em especial para aqueles que se encontram em áreas de vulnerabilidade social
AP: Ao sugerir a prática do esporte em especial aos estudantes que se encontram em situação de vulnerabilidade social se evidencia uma visão assistencialista, elitista, que não cabe mais dentro de todo o avanço político e social do Brasil. A prática do esporte deve ser promovida de maneira universal, através das escolas e políticas educacionais, mas essa visão do esporte com ênfase às situações de vulnerabilidade, é como se o governo disse que não vai fazer políticas sociais, de fato, de justiça social.
ON: O esporte tem um papel fundamental não só do ponto de vista profissional, mas enquanto elemento social, e precisa ser melhor articulado à educação, até via componente curricular da Educação Física. Mas restringir o desafio da vulnerabilidade, de alunos de contextos vulneráveis, à prática do esporte é uma visão absolutamente restrita e equivocada. Pra gente, de fato, conseguir enfrentar o desafio educacional em regiões mais vulneráveis há de se levar em conta uma série de outros fatores, alguns da própria escola, mas também os extra escola, na área da saúde, assistência social. É uma visão muito pequena para um desafio muito grande, que não toca na questão da desigualdade.
- atualizar as bases nacionais curriculares e as metodologias de ensino para o enfrentamento dos desafios atuais e futuros, de modo a melhorar a qualidade da educação e preparando os estudantes para o pleno desenvolvimento da pessoa humana para a vida cidadã e profissional
AP: Essa agenda de revisão dos currículos é antiga, bem como a intervenção no Programa Nacional de Livros, na formação dos professores, justamente para ter um controle maior do conteúdo da educação, indo ao encontro das agendas fundamentalistas que eles têm promovido, bem como revisionismos, negacionismos e até perseguição a agendas políticas e de promoção das diversidades, assim como pauta o Escola Sem Partido. É bastante grave essa menção, ainda que não explícita, mas no entrelinhas pode dar forma a uma proposta de retrocessos para a área.
ON: Entendo que a redação é genérica, pode caminhar para um lado positivo, como negativo, não fica claro. Mas sobre as metodologias de ensino, há um locus que é de atribuição do ministério da Educação e do qual ele tem se esquivado que é a formação inicial de professores, um dos principais gargalos da educação básica brasileira. Há poucos avanços na últimas décadas nesse sentido. O Conselho Nacional de Educação aprovou no fim do ano passado um novo conjunto de diretrizes curriculares nacionais para formação inicial de professores, um documento que não é perfeito, mas aponta no sentido que o Brasil precisa avançar, que o país tenha uma sólida formação docente inicial que o prepare esse profissional para o exercício da docência, articulando bem teoria e prática. Isso está aprovado há quase um ano e a sua implementação depende de avanços do ministério da Educação, e até agora não se ouviu absolutamente nada sobre o tema.
- reorganizar o sistema de pós-graduação e pesquisa, por meio do estímulo à prática multidisciplinar e à vinculação de projetos aos setores social e produtivo
AP: É preciso esclarecer o que eles consideram com essa reorganização e o que significa ela ser pautada em estímulo a vinculação a projetos de setores sociais e produtivos. Isso porque existe uma agenda explícita de apontar que faculdades e universidades que têm departamentos com foco na agenda das humanidades teriam menos importância no desenvolvimento tecnológico do Brasil, uma visão bastante utilitarista, objetivista e muito liberal das pesquisas em humanidades.
ON: Há experiências em curso no País de vinculação aos setores produtivos e com a sociedade, de modo mais geral, acho que esse é o ponto. Nos locais em que há de fato um sistema parrudo, que preserva a autonomia das universidades, mas as inserem como contribuinte do esforço maior, essa articulação é absolutamente fundamental. No entanto, não significa que esse é o objetivo da universidade, não dá pra restringir a melhoria do ensino superior só a essa questão. A discussão é muito mais ampla, complexa e exige um pensamento muito mais sistêmico para avançar no sentido desejado.