Cautela para pesquisa de número de alunos negros em universidades
Fonte: Carta Capital
Comemorada nas redes sociais, pesquisa que revela maioria de alunas e alunos negros em universidade deve ser vista com cuidado
As cotas raciais nas universidades foram capazes de imprimir nas universidades públicas o rosto que representa a maioria da população brasileira, que é negro. Recentemente, o estudo “Desigualdades sociais por cor ou raça”, divulgado pelo IBGE, informou que atualmente a maioria dos alunos das universidades federais são negros (50,3%).
Quando vi sendo divulgada em massa pelas redes sociais, confesso que um incômodo me tomou. Ao indicar uma maioria mínima no quadro de alunos, e ainda partindo do pressuposto da correção dos dados, é necessária cautela para interpretar o que essa pesquisa informa, para não cairmos em análises superficiais.
Não é uma questão desses cursos serem os mais importantes, de serem melhores do que os outros ou então afirmar que história, filosofia e ciências sociais não são importantes. Não é sobre isso. São cursos de extrema importância. É sobre como a área da educação é uma forma de estratificação social e como certos cursos foram criados da elite para a elite, como direito e medicina, por exemplo.
Claro que exceções à parte, precisamos nos perguntar por que o filho da elite “escolhe” medicina e o filho do motorista de ônibus “escolhe” pedagogia? É mesmo uma questão de escolha? De vontade? De subjetividade? Ou é porque o filho da elite tem um pai médico que já domina o campo e que tem capital financeiro o suficiente para manter o filho estudando medicina em tempo integral, comprando os caríssimos livros de medicina, garantindo, assim, que após a formatura o filho seja imediatamente absorvido pelo mercado, um dos que melhor remunera nesse país. Conhece algum médico desempregado?
Outra observação que não pode deixar de ser feita é a respeito do cenário político que estamos vivendo, que não tem a menor intenção de dar prosseguimento a políticas públicas de inclusão da população negra das universidades, muito pelo contrário. Portanto, seria até mesmo importante ter cuidado com alardes que possam autorizar mobilizações que visem o fim dessa política pública de cotas raciais nas universidades, baseando-se em interpretações apressadas e acríticas.
Vamos comemorar os resultados apresentados com dados, frutos de políticas públicas exitosas na área da educação promovida pelos governos anteriores, mas vamos exigir a restituição do todo e não apenas de parte.
Assim, podemos dizer com muita propriedade que a política pública de inclusão da população negra nas universidades públicas ainda precisa ser aperfeiçoada em muitos sentidos, desde como o aluno e aluna negra são tratados na portaria dessas universidades, na sala de aula pelos professores e professoras, até as formas de garantir que esses alunos tenham a garantia do transporte, dos livros, da alimentação, da moradia, da tranquilidade que o filho da elite tem para estudar.
Como tem sido o tratamento que esses/as alunos/as negros/as estão recebendo nessas universidades desde a portaria até a sala de aula?
Conclusões aceleradas sobre a pesquisa podem nos impedir de enxergar a problemática referente a recursos humanos. Sabemos que há universidades engajadas na luta antirracista, mas pergunta-se de uma forma geral. Por exemplo, questiona-se: servidores públicos e terceirizados nessas universidades estão recebendo treinamento para aprender que o aluno e aluna negra têm direito de estar naquele espaço?
Reitores, reitoras, professores e professoras estão fazendo alguma imersão, passando por algum treinamento, para aprender a lidar com o aluno e a aluna negra que chega em sala de aula após sofrer uma violência racista? Como essas universidades estão atuando para dar acolhimento a esses alunos e alunas que sofrem violência racista desde a portaria até a sala de aula dentro dessas instituições de ensino?
Quando o aluno e a aluna negra é tratada de forma diferenciada nessas universidades, o que os alunos e alunas brancas que se acreditam aliados da luta antirracista estão fazendo? Acolhendo, apoiando e se movimentando para mudar as estruturas? Estão procurando as autoridades acadêmicas para dizer que não aceitam mais que seus colegas negros sejam tratados de forma diferenciada e que vivam sofrendo violência racista? Estão encaminhando seus relatos para dizer que jamais passaram pelo que seus amigos negros e negras passam constantemente?
A teoria sem a prática é morta
Problematizando as comemorações antecipadas ao resultado da pesquisa, sem antes olhar a fundo a realidade acadêmica, pergunta-se na ordem epistemológica: o que está sendo feito com todo o conhecimento sobre a questão de raça que está sendo produzido na academia? TCC, dissertação e tese “para inglês ver”? Esse conhecimento está sendo engavetado? Qual é o interesse pelo tema raça que as instâncias de tomada de decisão dessas universidades estão manifestando ter?
O tema raça está sendo tratado como tema periférico?
Professores e professoras brancas que estão dando aulas sobre raça e racismo estão também se interessando em estudar branquitude ou acham que identitário é só o negro? Branquitude não é identidade?
Oportuno lembrar que a filósofa Djamila Ribeiro, no livro “Pequeno manual antirracista”, recém lançado, nos diz que “o problema não é a cor, mas seu uso como justificativa para segregar e oprimir. Vejam cores, somos diversos e não há nada de errado nisso – se vivemos relações raciais, é preciso falar sobre negritude e também sobre branquitude”.
Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.