Setembro: um mês para lembrar da saúde mental*
O dia 10 de setembro foi escolhido como dia mundial de prevenção ao suicídio e marca um mês dedicado à discussão do assunto. Desde 2014, a Associação Brasileira de Psiquiatria, em conjunto com o Conselho Federal de Medicina, promove no país a campanha de prevenção ao suicídio: o Setembro Amarelo. Desde sua inauguração a ideia foi incorporada por instituições públicas e privadas, como estratégia de endomarketing, sob o subterfúgio da promoção de saúde mental dentro das corporações. No entanto, a abordagem do tema ocorre de maneira psicologizante, individualista e imbuída de vieses moralistas. Isso culmina em silenciamento do sofrimento e culpabilização. Apesar disso, há de se ressaltar que a disseminação da discussão sobre o assunto, sobretudo, sobre saúde mental, é o primeiro e mais importante passo e a oportunidade para avançar no debate, ampliar a compreensão dos determinantes de saúde e sofrimento.
Imagine uma cena: um aquário fétido, sujo, com águas turvas e espessas. Dentro dele, alguns peixes moribundos, que já pálidos e cansados, vagueiam de um lado ao outro tentando sobreviver. Diante desse cenário: limpamos o aquário ou tratamos os peixes?
O aquário precisa ser limpo e também os peixes precisarão de cuidados. É na relação entre cada uma(um) de nós com o nosso redor e nossas condições concretas de vida que formamos e manifestamos nossa saúde, nossos desejos, prazeres, identidades e também frustrações e adoecimentos.
Do ponto de vista individual, identificar os pontos que causam sofrimento e dores é fundamental para acolher e cuidar. Do ponto de vista coletivo, identificar fatores psicossociais que promovem risco de adoecimentos se faz primordial à promoção de políticas públicas efetivas. Pesquisas com análises dos contextos amplos dos determinantes do processo de saúde e doença demonstram que em locais onde as condições concretas de vida, incluindo condições de trabalho, são mais equânimes, os índices gerais de saúde são mais positivos[1].
Conforme o contexto se transforma, se alteram também os modos de existir, adoecer e morrer. Como Marx[2] já nos alertava em sua obra sobre o suicídio, em épocas de crises, os números de ocorrências extrapolavam as médias e tomavam caráter epidêmico, sendo então, uma grande denúncia ao contexto intragável que se despontava naquele tempo. As manifestações de adoecimentos, seja no âmbito físico ou psíquico (que são indissociáveis), são revelações de condições de algum modo danosas.
O cenário atual, especialmente, considerando as transformações do mundo do trabalho, atravessado pela produção massiva de desigualdades, avanço das políticas neoliberais que culminam em ambientes cada vez mais competitivos, individualizantes e penosos, cargas de trabalho excessivas, apologia ao empreendedorismo, fragilização de vínculos e de movimentos sindicais, uberização do trabalho, uso de estratégias violentas como gestão… todo esse conjunto constitui um grande chão social que enraíza o sofrimento e os adoecimentos psíquicos que vão se manifestar individual e coletivamente. A vulnerabilização da(o) trabalhador(a) é fundamental à manutenção do modus operandi neoliberal, que fragiliza, adoece, individualiza e vende a promessa de cura (também pelo viés individualista).
Em um levantamento recente feito pelo Sindicato Nacional sobre Condições de Trabalho e Saúde dos(as) Docentes[3], em sua primeira etapa, aponta que 42% dos participantes sente-se sempre sobrecarregados, outros 33% apontam que esse sentimento é frequente. Somente cerca de 4,7% das pessoas não manifestaram essa sensação. Além disso, em relação à pressão com prazos e metas, a maioria das pessoas (79%) respondeu que se sente pressionada sempre ou frequentemente.
A invasão da vida privada e do tempo livre de docentes manifesta-se pelas implicações da plataformização do trabalho e excesso de atividades administrativas e burocráticas. Cerca de 99% das pessoas apontaram que já resolveram assuntos do trabalho fora do expediente ou da instituição, retrato de um trabalho que as acompanha 24 horas por dia em todo lugar, que restringe o tempo livre, a liberdade e a autonomia da(o) professor(a).
Dentre as manifestações de sofrimento, os transtornos de ansiedade e de humor são os mais frequentes. Além disso, é importante lembrar da indissociabilidade entre corpo e psiquê, dessa forma também os adoecimentos físicos podem se manifestar nesse emaranhado de sofrimento psíquico.
Do ponto de vista individual é importante estar atento aos sinais de que a saúde mental não vai bem, observando mudanças negativas no modo de encarar os desafios cotidianos, é necessário buscar ajuda, cerca-se de experiências que compensem e ajudem a enfrentar determinados sofrimentos.
Do ponto de vista coletivo faz-se imprescindível o olhar crítico, o engajamento na luta para o resgate da humanidade da existência, do respeito ao tempo e aos limites. É preciso reconectar os laços, pensar em como a complexidade do contexto produz indivíduos maltratados, envolvidos em dramas que podem parecer insolúveis. O sofrimento, inerente à existência, pode se tornar um grande padecimento e é nessa realidade que foge ao tolerável que o sujeito sucumbe.
É preciso reforçar que é necessário limpar o aquário, mas também cuidar dos peixes. Mas… sair do aquário, nadar em águas límpidas e correntes pode ser ainda mais salutar.
*AUTORIA: Julie Amaral, Psicóloga do Núcleo de Acolhimento e Diálogo do APUBH UFMG+
[1] BUSS, Paulo Marchiori; PELLEGRINI FILHO, Alberto. A saúde e seus determinantes sociais. Physis: revista de saúde coletiva, v. 17, p. 77-93, 2007.
[2] MARX, Karl. Sobre o suicídio. Boitempo Editorial, 2015.
[3] ANDES, Sindicato Nacional. Condições de Trabalho e Saúde dos(as) Docentes que atuam nas Universidades Públicas, Institutos Federais e CEFETs 1ª etapa. Grupo de Trabalho de Seguridade Social e Assuntos de Aposentadoria (GTSSA). Disponível em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.andes.org.br/diretorios/files/Beregeno/PDF4/Relat%C3%B3rio-%20EN-sa%C3%BAde-docente.pdf. 2023