As professoras cientistas mulheres na Universidade e as violências de gênero
No ensejo do 8M deste ano, é preciso lembrar a data como uma marca de luta e resistência de mulheres contra as diversas formas de violência, a misoginia estrutural e a busca por liberdade, paridade de acessos, direito de viver sem medo de ser violentada ou morta pelo “simples fato de ser mulher” e dignidade no trabalho e em todas as outras esferas da vida. A primeira mulher a cursar o ensino superior no Brasil foi Rita Lobato Velho Lopes na faculdade de medicina do Rio de Janeiro. Ela terminou seu curso com a observação de ser a primeira mulher diplomada em medicina do país em 1887. De lá até a conquista ao acesso livre à educação por mulheres, muitas lutas foram travadas.
Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2022, a presença de mulheres estudantes na Universidade é maior que a presença de homens, ocupando 57,5% das vagas[1]. Quando a estratificação é feita com estudantes prestes a se formar, a tendência se mantém e as mulheres novamente são maioria, com 60,3%. Sobre o perfil de cursos, as mulheres são grande maioria nos cursos da área de educação (77,9%); Saúde e bem-estar (73,3%); e Ciências sociais, comunicação e informação (72%), segundo dados do Ministério da Educação[2]. Na docência no Ensino Superior, apesar da crescente participação feminina, as mulheres ainda ocupam minoria das cadeiras de professores universitários, cerca de 47,3%[3].
A entrada e permanência de mulheres na Universidade, seja para discentes ou docentes é atravessada por violências de gênero. Elas acontecem de distintas maneiras, com grande presença de assédio moral, ameaças, humilhações e violência sexual[4]. Para as estudantes, podem aparecer em formato de trotes, troca de “favores”, em diversos cenários como festas, clubes esportivos, salas de aula, viagens de trabalho de campo e repúblicas. Para professoras, podem acontecer em reuniões públicas, em eventos, também em atividades externas, em momentos de aulas, em ambientes virtuais, ou até mesmo nos corredores dos seus ambientes laborais, sozinhas com os agressores.
É preciso lembrar que, apesar das políticas públicas de acesso à Universidade dos últimos anos que permite acesso pelas camadas mais pobres da população, esse espaço continua ocupado predominantemente pelas camadas com rendas médias e altas e as violências de gênero mantem-se presentes. Portanto é importante reconhecer essa violência como estrutural, que toca transversalmente as diversas camadas sociais. No entanto, destaca-se que as violências de gênero são atravessadas pela interseccionalidade, ou seja, há uma sobreposição de violências sociais. Mulheres negras e pobres podem estar ainda mais suscetíveis às investidas nefastas do patriarcado.
As violências contra as mulheres é um tema pouco explorado na literatura, observa-se uma escassez de estudos publicados sobre essas vivências, especialmente sobre o enfrentamento dessa realidade pelas Universidades. No Brasil não há leis que obriguem as Universidades a adotarem determinados processos e procedimentos diante de um caso de violência de gênero, que muitas vezes, quando denunciados, caminham para o arquivamento.
Nesse cenário de invisibilidade, os estudos apontam que os casos de violência cometidos por professores contra alunas de graduação ou pós são mais difíceis de serem denunciados e formalizados, dada a relação desigual de poder e o receio da completa ausência de resposta e até possível retaliação. Porém, entre colegas docentes do mesmo nível hierárquico ou com diferenças de relações de poder a tendência se mantém e os casos são também difíceis de serem retratados[5]. O que nos faz refletir sobre a cultura de culpabilização das vítimas mulheres. De maneira geral as mulheres, ao fazer denúncias de violências sofridas, precisam enfrentar os questionamentos, a culpabilização e necessidade de provar o que denuncia, esse cenário também acontece na Universidade, atravessado também pelas relações de poder internas.
A misoginia pode se manifestar de diversas maneiras, desde aquela mais conhecida pelo senso comum: a violência física, em que há consumação de agressão até a violência psicológica, com presença de ameaças, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insultos, chantagens. Todas essas práticas no ambiente laboral podem ser, inclusive, mascaradas pela intensidade do trabalho no cotidiano da Universidade, em forma de cobranças por produtividade, por exemplo. Isso torna ainda mais difícil sua devida identificação.
As violências podem, ainda, ser sexuais, com presença de assédios sexuais. Lembrando que mesmo não havendo explicitação de negativa por parte da mulher, ainda assim pode-se classificar com violência sexual. Além disso, essa forma de violação é, ainda, considerada crime, cabendo denúncia e punição penal. As violências podem ser também morais, manifestando-se com ofensas, degradação da imagem da mulher pesquisadora, ofensas, entre tantas outras práticas[6]. As formas como acontecem essas violações podem ser diversas no ambiente laboral acadêmico, com sobreposição e simultaneidade das formas como acontecem.
De acordo com uma pesquisa conduzida pela Data Popular/Instituto Avon em 2015[7], 67% das universitárias entrevistadas disseram já ter sofrido algum tipo de violência (sexual, psicológica, moral ou física) praticada por um homem no ambiente universitário; 56% já sofreram assédio sexual; 28% já sofreram violência sexual (estupro, tentativa de abuso enquanto sob efeito de álcool, ser tocada sem consentimento, ser forçada a beijar veterano); 42% já sentiram medo de sofrer violência no ambiente universitário e 36% já deixaram de fazer alguma atividade na universidade por medo de sofrer violência. Por outro lado, 27% dos homens avaliam que não é violência abusar de uma garota se ela estiver alcoolizada; 35% não reconhecem que existe violência no ato de coagir uma mulher a participar de atividades degradantes; 31% não veem problema em repassar fotos ou vídeos das colegas sem autorização. Isso demonstra um cenário de naturalização da nefasta violência de gênero que cria um ambiente hostil, perigoso para as mulheres e meninas.
A misoginia atua na degradação da saúde mental de mulheres, com consequências nefastas e muitas vezes, marcas definitivas na subjetividade. Ela impõe um sofrimento inerente à existência enquanto mulher na sociedade patriarcal violenta. Além disso, produz marcas de adoecimentos fruto da vivência, por vezes traumática, e a consequente fragilização e desorganização psíquica. Observa-se nas mulheres que foram violentadas apresentam maiores incidências de depressões, tentativas de suicídio, transtornos de estresse pós traumático, transtornos de ansiedade, entre tantas outras possibilidades de sofrimento.
Como um fenômeno social complexo, as violências de gênero têm como uma das bases explicativas concretas a divisão sexual do trabalho. Com o advento do capitalismo, o trabalho que era reduzido a separação do trabalho “feminino” e “masculino”, instaura-se a separação entre o que é esfera produtiva e esfera reprodutiva. Nesse contexto as mulheres se encarregariam da esfera reprodutiva, privada (o trabalho invisível e não remunerado) e os homens da esfera mercantilizável, produtiva e pública. Ao mesmo tempo, o trabalho produtivo é dependente do trabalho invisível reprodutivo.
Há uma sobreposição de ocupação de papeis sociais e de esferas de trabalho, dessa maneira, as mulheres continuam encarregadas da esfera privada do cuidado doméstico e ainda do trabalho produtivo. Porém, sob a globalização neoliberal que segue padrões misóginos, racistas e preconceituosos, poucas mulheres acessam altos cargos e altos salários, sendo que a maioria ocupa cargos com menores salários, mais precários e em ramos que estão mais ligados ao trabalho do cuidado, como saúde e bem-estar.
Em um ambiente competitivo, com métricas exigentes de produtividade, as professoras/cientistas mulheres sofrem com as cobranças e a sobrecarga de tarefas. Na pandemia, por exemplo, em que o trabalho passou a ser executado em ambiente doméstico, essa realidade ficou ainda mais escancarada. Houve um declínio da participação feminina em produções científicas, que caiu em maio de 2020 7% em comparação ao mês anterior que já tinha registrado queda de 2%[8]. Com o fechamento das escolas, as mulheres cientistas mães ficaram ainda mais ocupadas com as atividades dos cuidados com os filhos. Além disso, as cientistas cotidianamente já fazem o dobro de atividades domésticas como cozinhar, limpar e lavar roupas do que cientistas homens.
Se no universo acadêmico, o reconhecimento, a progressão de carreira, o prestígio científico e o acesso a recursos financeiros estão atrelados à produtividade, a sobrecarga de tarefas e a ausência de equidade de gênero atuam como um importante impedimento à paridade de direitos, oportunidades e recursos. Portanto, são necessárias estratégias de prevenção da violência, a partir de um referencial comprometido com a garantia de direitos humanos, interseccionalidade, ética nas relações interpessoais e relações de trabalho e, sobretudo, com a liberdade de existir de mulheres e meninas nos espaços que bem desejarem.
Núcleo de Acolhimento e Diálogo – NADi/APUBH UFMG+
[1] https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/genero/20163-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html
[2] https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2023/marco/dia-da-mulher-mulheres-sao-maioria-na-docencia-e-gestao-da-educacao-basica
[3] https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/22052-as-mulheres-do-brasil.html#:~:text=No%20Ensino%20Superior%2C%20as%20mulheres,de%20Ensino%20Superior%20no%20Brasil.
[4] D’OLIVEIRA, Ana Flávia. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, v. 23, p. e190650, 2019.
[5] D’OLIVEIRA, Ana Flávia. Invisibilidade e banalização da violência contra as mulheres na universidade: reconhecer para mudar. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, v. 23, p. e190650, 2019.
[6] https://www.institutomariadapenha.org.br/lei-11340/tipos-de-violencia.html
[7] https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-e-fontes/pesquisa/violencia-contra-a-mulher-no-ambiente-universitario-data-popularinstituto-avon-2015/
[8] https://www.abcd.usp.br/noticias/49310/