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A crise é mesmo de saúde mental?

Nas últimas semanas circulou nas grandes mídias a notícia sobre o número de afastamentos do trabalho por motivos de adoecimentos mentais. De acordo com os dados divulgados, que segundo a própria fonte[1] foram fornecidos com exclusividade pelo Ministério da Previdência Social, em 2024, 472 mil solicitações ao INSS foram motivadas por questões ligadas à saúde mental. Isso significou um marco histórico com aumento de 68% dos pedidos em relação a dez anos atrás. Segundo os mesmos dados, a maioria dos afastamentos foram concedidos às mulheres, cerca de 64%, com idade média de 41 anos. Os quadros mais prevalentes de adoecimentos foram os quadros de transtornos ansiosos e depressivos.

De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde[2], em um levantamento histórico de 2019, mais de 1 bilhão de pessoas viviam com algum transtorno mental. Os números tornaram-se ainda mias alarmantes no cenário pandêmico, em que os quadros de depressão e ansiedade cresceram cerca de 25%. O relatório também aponta que as pessoas acometidas pelos sofrimentos psíquicos têm em média 10 a 20 anos de vida a menos que a população geral. Além disso, os países mais pobres estão mais suscetíveis a mais altas taxas de adoecimentos mentais, seja pelas condições socioeconômicas geradoras de sofrimento psíquico, seja pela dificuldade de estabelecimento de políticas públicas de acompanhamento, acolhimento e tratamento[3].

Esses números parecem explicitar uma grande crise. Mas é mesmo uma crise de saúde mental? Sofrer é inerente a existência humana, porém, a forma como se sofre denuncia um contexto social específico e não é um mero fruto de desiquilíbrios individuais. Cada sofrimento é socialmente localizado. Os diagnósticos e os afastamentos são na verdade uma grande denúncia de que algo não vai bem. Mas algo não vai bem com quem? Ou melhor, com o que?

Para compreendermos as formas de produção dos processos de saúde e doença é necessário entender a dimensão da produção social das esferas biológicas e psíquicas humanas, ou seja, nosso corpo, comportamento e subjetividade estão subordinados às condições concretas de vida, incluindo, condições socioeconômicas, políticas, de trabalho e aspectos culturais.

Essas condições vão atuar como propriedades protetoras ou deteriorantes da saúde, seja física ou mental, ou ambas. As condições benéficas vão favorecer defesas, suportes, margens de ação e condições de recuperação de saúde, seja no nível individual ou coletivo. Já as destruidoras geram privação, desgaste e privação em diversas esferas da vida. Dessa forma, nossas reações emocionais estão diretamente relacionadas as condições em que nos encontramos, sejam elas boas ou ruins. As vivências emocionais positivas geralmente estão atreladas a satisfação de necessidades ou uma boa correspondência com as exigências sociais. Por outro lado, o impedimento a satisfação das necessidades resulta em reações negativas. Há uma espécie de extrapolamento das capacidades de enfrentamento, uma extirpação dos recursos psíquicos individuais e coletivos para lidar com determinado contexto.

O número alarmante de afastamento escancara condições concretas de vida e trabalho desumanas, degradantes e a total ausência de dignidade no trabalho. Condições inerentes ao modo de vida e produção no capitalismo. Vivemos em uma sociedade que naturaliza e exalta a alta produtividade e o cansaço. Descansar é desperdiçar tempo!

O modo de vida no capitalismo está atravessado pela intensificação do trabalho, pela exigência da multifuncionalidade e acúmulo de funções, exigência de proatividade, formas veladas e sofisticadas de coerção e captura da subjetividade. Tudo isso para alcançar a submissão de trabalhadores às imposições e viabilizar a lucratividade.

O uso de tecnologias fez com que o ambiente e horário de trabalho extrapolem o acordado e invadam as outras esferas da vida de cada trabalhador e trabalhadora. Cada vez é mais natural estar conectado 24 horas por dia à disposição. O que, consequentemente, aumenta o desgaste físico e mental e reduz tempo de recuperação e descanso efetivo.

Há um culto à competitividade e as relações de trabalho tornam-se cada vez mais distantes e frias, permeadas pela individualidade e desconfiança. Temos então um terreno fértil para produção e generalização das formas de violência como o assédio e até mesmo uso dessas estratégias como gestão.

Todos esses processos estão na base da produção de um conjunto de cargas físicas, mentais, mecânicas, fisiológicas… e ante a limitação inerentemente humana, essas cargas produzem perfis epidemiológicos típicos[4] que escancaram e denunciam a crise, que não é só de saúde, mas de condições concretas de vida e trabalho.

Mas essa não parece ser uma característica extramuros da Universidade. Professores e professoras, alguma semelhança com sua realidade?

No contexto acadêmico, a maioria dos estudos sobre a produção de adoecimentos no trabalho estão atrelados à compreensão dos impactos das condições de trabalho na saúde. Ritmo acelerado de trabalho, volume excessivo de atividades, tempo para realização das tarefas insuficiente, sobrecarga, conflitos entre pares e com alunos são fatores apontados como base dos desencadeadores de sofrimentos em professores e professoras universitários(as)[5].

Apesar da literatura sobre a temática nos ajudar a compreender um pouco dessa realidade, é preciso avançar. Conhecer o perfil epidemiológico dos sofrimentos de professores e professoras da UFMG é fundamental, pois isso nos dá indícios e pistas sobre a causalidade e nos permite pensar coletivamente em estratégias de enfrentamento de uma realidade que tem se tornado cada vez mais incidente: o adoecimento de professores e professoras. Professor e professora, você conhece esses números, conhece colegas afastados, adoecidos?

Além dos altíssimos custos sociais que os adoecimentos provocam, há custos coletivos mais profundos: uma coletividade fragmentada e cooptada pelos valores individualistas, a ruptura dos laços de solidariedade, a perda do prazer no trabalho, a perda do desejo de fazer o conhecimento progredir, o extirpamento dos sonhos e da possibilidade dos avanços sociais!

 


[1] https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2025/03/10/crise-de-saude-mental-brasil-tem-maior-numero-de-afastamentos-por-ansiedade-e-depressao-em-10-anos.ghtml

[2] https://news.un.org/pt/story/2022/06/1792702

[3] VIAPIANA, Vitória Nassar; GOMES, Rogério Miranda; ALBUQUERQUE, Guilherme Souza Cavalcanti de. Adoecimento psíquico na sociedade contemporânea: notas conceituais da teoria da determinação social do processo saúde-doença. Saúde em debate, v. 42, p. 175-186, 2018.

[4] VIAPIANA, Vitória Nassar; GOMES, Rogério Miranda; ALBUQUERQUE, Guilherme Souza Cavalcanti de. Adoecimento psíquico na sociedade contemporânea: notas conceituais da teoria da determinação social do processo saúde-doença. Saúde em debate, v. 42, p. 175-186, 2018.

[5] CAMPOS, Taís Cordeiro; VÉRAS, Renata Meira; ARAÚJO, Tânia Maria de. Transtornos mentais comuns em docentes do ensino superior: evidências de aspectos sociodemográficos e do trabalho. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior (Campinas), v. 25, p. 745-768, 2020.