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Negacionismo e censura

Por Paulo Sérgio Lacerda Beirão*

 

Nem bem esquentou a cadeira presidencial, o presidente Donald Trump desfiou uma série de decretos impactantes. Nenhum deveria trazer muita surpresa, por serem coerentes com suas falas de campanha, mas a realidade é que muitos surpreenderam pela sua irresponsável truculência. Sem menosprezar os demais, vou me ater àqueles decretos que afetam o desenvolvimento científico.

Paulo Sérgio Lacerda Beirão, professor emérito da UFMG e integrante da Diretoria Ciência, Tecnologia e Educação do APUBHUFMG+ | Foto: Acervo APUBHUFMG+.

As instituições federais de pesquisa dos EUA receberam ordens para impedirem publicações que usassem conceitos (e palavras a eles relacionadas) que não agradam ao presidente. Por exemplo, ele decretou que os EUA só reconhecem os sexos masculino e feminino, abolindo o conceito de gênero. Não se trata apenas de uma mudança de nome, como a decretada mudança do nome do Golfo do Mexico, que ele quer que seja chamado de Golfo da América. Que os estadunidenses assim o chamem não é um grande problema. Afinal existem divergências de nomes de acidentes geográficos – por exemplo, os britânicos chamam de English Channel o que os franceses (bem como espanhóis, portugueses e brasileiros) chamam de canal da Mancha. O problema no caso é que ele decretou não existir diversidade de gênero – só os sexos masculino e feminino. Portanto, o problema não se limita a uma nomenclatura, mas a negação de uma realidade. No bojo dessa negação vem a proibição de termos ligados a direitos humanos, discriminação étnica e racial, justiça social, sistemas de opressão, princípios democráticos, crise ecológica e mudanças climáticas, entre vários outros termos.

As consequências já se fazem sentir em várias áreas e em todas instituições de pesquisa nos EUA. Vou exemplificar com o caso do CDC (Centers for Disease Control and Prevention), órgão de importância mundial para estatísticas e controle de doenças transmissíveis. Esta instituição recebeu ordens de sustar a publicação, a análise e a elaboração de artigos que contenham referências a questões de gênero. Uma lista enorme de palavras foi apresentada para serem banidas de publicações do CDC. A consequência imediata foi a falha na publicação de uma de suas principais revistas, a Morbidity and Mortality Weekly Report que, contrariando seu nome e a tradição de mais de 60 anos, ficou duas semanas sem poder ser publicada. Mas essa proibição vai mais além: ela proíbe o uso dessas expressões em qualquer publicação feita por membros do CDC em qualquer revista científica, seja ela estadunidense ou não. Mesmo no caso de um artigo já ter sido aceito e esteja em vias de publicação, essas expressões têm que ser removidas. No caso do CDC, essa proibição traz consequências graves para a saúde pública por que impedirá que sejam identificados grupos mais suscetíveis a determinadas doenças e agravos, impedindo a formulação de políticas públicas para a sua prevenção.

Essa censura já atinge pesquisadores estrangeiros, inclusive brasileiros. Projetos financiados por agências federais estadunidenses com termos fora do agrado do senhor presidente podem ser descontinuados ou terão que sofrer extensa revisão. Será enorme o impacto negativo sobre a ciência mundial, especialmente em áreas que o atual governo dos EUA prefere negar.

Já conhecemos o negacionismo da ciência e, infelizmente, já experimentamos os seus efeitos perversos na pandemia da Covid-19. Não contentes em negar o que a ciência vem mostrando e demonstrando, agora a extrema direita quer impor censura no conteúdo das publicações científicas. Esse é um ataque grave à ciência e sem precedentes recentes. Essa absurda censura vem em clara contradição ao que Donald Trump declarou no seu discurso de posse: “também assinarei uma ordem executiva para interromper imediatamente toda a censura governamental e trazer de volta a liberdade de expressão aos Estados Unidos”. Sabemos agora que ele se referia apenas ao vale-tudo das redes sociais.

 

*Paulo Sérgio Lacerda Beirão, professor emérito da UFMG e integrante da Diretoria Ciência, Tecnologia e Educação do APUBHUFMG+