As ruas podem (e devem) pautar a política nacional
Nas últimas semanas, estamos acompanhando, na prática, como a pressão popular pode influenciar as discussões no Congresso Nacional. Em diversas cidades do país, a população saiu às ruas para se manifestar contra o Projeto de Lei (PL) 1904/2024, mais conhecido como “PL do estupro” ou “PL da gravidez infantil”. Os protestos também tomaram as redes sociais, assim como mobilizaram parlamentares, personalidades da cultura e da política e movimentos sociais e sindicais. Diante da reação popular, a discussão sobre a proposta perdeu força entre os parlamentares.
Assim, mais uma vez, o povo freou o avanço de uma pauta reacionária. Essa experiência serve, ainda, como ponto de partida para a reflexão sobre a maneira como atuam as correntes políticas, atualmente, majoritárias no Congresso. Da mesma forma, também percebemos as tentativas da ala parlamentar mais à direita de silenciar a participação popular.
A imprensa divulgou amplamente o recuo de parlamentares em relação ao projeto. Isso ficou particularmente nítido entre integrantes do “Centrão”, cujo apoio era tido, até então, como certo. E o próprio presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), admitiu, em pronunciamento oficial, que o debate sobre o PL deve ficar para o segundo semestre. Agora, Lira tenta se esquivar da repercussão negativa da proposta. Não podemos esquecer, no entanto, da atuação do parlamentar para que a tramitação em regime de urgência do projeto passasse na Casa. Por isso mesmo, o nome do presidente Casa figurou entre maiores alvos dos protestos.
A matéria foi aprovada na Câmara em apenas 23 segundos, em uma votação simbólica e sem o registro dos votos no painel. Algo que só foi possível devido a um acordo costurado entre a parcela mais reacionária e fundamentalista dos deputados, a chamada bancada evangélica, e o próprio “Centrão”, que tem Lira como um de seus maiores articuladores. Assim, no PL do estupro, a vida e a dignidade humanas foram usadas como moeda de troca em negociações políticas.
Cabe lembrar que estamos falando do mesmo “Centrão” que tem mantido o governo federal como refém. Pela configuração desse sistema político, que na atualidade do país é caracterizado pelo governo de coalizão, o Poder Executivo tem dependido da sustentação desses parlamentares para a aprovação de projetos, em negociações que se revelam como verdadeiras chantagens para aprovar pautas fundamentais para construção e/ou manutenção de políticas públicas relevantes.
E ainda que, por enquanto, o PL 1904 não seja votado, o problema persiste. Afinal, o texto já está pronto para ser levado novamente ao plenário. Por isso mesmo, a pressão precisa continuar. E não se trata de negociar e nem de amenizar o texto, mas de enterrar de vez esse projeto de lei. Até porque, não estamos diante de um caso isolado, mas de uma nova etapa do trajeto que já vem sendo pavimentado no Congresso. Para se ter ideia do problema, de acordo com o Instituto AzMina, apenas em 2023, 39 proposições foram apresentadas, por parte de parlamentares, para atacar o direito de acesso ao aborto.
Ademais, devemos chamar a atenção para o fato da extrema direita ter se sentido confortável o suficiente para propor uma proposta como essa, mesmo com a possibilidade de rejeição por parte da população. Na verdade, estamos testemunhando a prática da pequena política, que se utiliza do desconhecimento, do pânico moral e de discursos de ódio para inflamar e fidelizar o seu eleitorado. Lembrando que, mesmo com a derrota da extrema direita para a presidência, a maior parte da atual composição do Congresso Nacional continua a ser conservadora e reacionária.
Ataques da extrema direita
O PL do Estupro escancara, ainda, a maneira como o fundamentalismo atenta contra os direitos sexuais e reprodutivos das pessoas que gestam. Direitos esses que são bandeiras de luta históricas dos movimentos feministas. Não por acaso, estamos falando de um movimento político popular que possui papel decisivo na luta por pautas progressistas, assim como para barrar o avanço de pautas reacionárias e neoliberais.
As investidas da extrema direita também podem ser observadas contra outros movimentos que se opõem aos interesses da classe dominante. Basta lembrar como a bancada do agronegócio lida com as pautas referentes às causas ambientais. E o mesmo pode ser dito em relação aos debates no Congresso que afetam, direta ou indiretamente, as pessoas negras, indígenas e LGBTQIAP+.
Em paralelo, também notamos o mesmo na campanha difamatória de medidas que visam o enfraquecimento dos sindicatos. Algo que serviu, nas gestões neoliberais Temer e Bolsonaro, para sucatear os direitos da classe trabalhadora. Em outras palavras, para defender os seus próprios interesses, as correntes reacionárias se esforçam para enfraquecer os movimentos políticos e sociais.
As ruas são o nosso espaço de luta. Através da organização coletiva, exercemos o nosso papel político para conquistar, manter e garantir o cumprimento de nossos direitos. E a mobilização contra a PL do Estupro demonstrou, na prática, como a pressão popular pode – e, na verdade, deve – servir de instrumento político para influenciar a classe política.
PL do Estupro
O Projeto de Lei (PL) 1904/2024, “PL do estupro” ou “PL da gravidez infantil” foi uma proposta do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). O Projeto de Lei foi assinado, a princípio, por mais de 32 parlamentares da base bolsonarista e prevê a criminalização do aborto após 22 semanas de gestação, até mesmo em casos permitidos por lei, como o estupro da criança, da adolescente ou da mulher.
Em uma eventual aprovação do projeto, a vítima de estupro poderia receber uma pena maior do que aplicada ao estuprador. Isso porque o PL 1904/2024 prevê a equiparação do aborto após 22 semanas de gestação com o crime de homicídio simples, cuja pena vai de 6 a 20 anos de prisão. Já a pena para o crime de estupro prevê um tempo de reclusão de no máximo 10 anos, com a probabilidade de serem soltos em menos tempo.
A discussão lançou luz, ainda, sobre a dificuldade que a população sofre para ter acesso ao aborto legal. De acordo com a lei brasileira, o aborto é um direito nos casos de gestação que decorrem de estupro, que a gravidez pode causar a morte da gestante e que os fetos são anencefálicos. E nessas situações, não há restrição de tempo para o procedimento. Atualmente, contudo, até um terço dos casos de aborto legal só ocorrem após 22 semanas de gestação. Os números foram levantados pelo jornal Folha de S. Paulo, com base no depoimento de profissionais que atuam em serviços de abortamento.
Assim, percebemos como uma eventual implementação da mudança na legislação significaria, na prática, o agravamento de um problema que já está posto. Ou seja, um retrocesso sem precedentes em relação a direitos conquistados pelas pessoas que gestam no país.