NADi APUBHUFMG+ entrevista Maria Luísa Nogueira: Acolhimento de pessoas com autismo na Universidade
Você já parou para pensar no cotidiano de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) na universidade e no ambiente de trabalho? Na atuação do APUBHUFMG+ voltada para docentes, percebemos que, por vezes, a ausência do devido acolhimento da Universidade para pessoas com diagnóstico tardio pode ser danosa à sua saúde mental.
Nesta conversa com a professora Maria Luísa Nogueira Magalhães, conduzida pelo Núcleo de Acolhimento e Diálogo (NADi APUBHUFMG+), trazemos à tona a discussão sobre a realidade enfrentada por pessoas com TEA no meio acadêmico, sejam estudantes ou docentes, e o papel da Universidade no seu acolhimento. Além disso, abordamos as especificidades vividas por autistas no ambiente laboral, assim como a importância de ações afirmativas e da aplicação de legislação própria.
A professora compartilhou conosco a sua experiência à frente do Programa de Atenção Interdisciplinar ao Autismo (PRAIA) da UFMG, iniciativa que idealizou e coordena ao lado da professora Ana Amélia Cardoso, do curso de Terapia Ocupacional da universidade. Psicóloga e professora do Departamento de Psicologia da UFMG, a professora Maria Luísa possui doutorado em Geografia/UFMG (2013) e mestrado em Psicologia/UFMG (2004). Atualmente, ela coordena a Especialização em Transtornos do Espectro do Autismo e co-coordena o Laboratório de Estudo e Extensão em Autismo (LEAD) e o já citado PRAIA, sendo todas essas iniciativas na UFMG.
Confira, a seguir, a entrevista.
APUBHUFMG+ – Professora, você, junto com a professora Ana Amélia são coordenadoras do Programa de Atenção Interdisciplinar ao Autismo (PRAIA UFMG). Como ele funciona e quais os impactos do programa para a comunidade externa e para a comunidade Universitária?
Maria Luísa Nogueira – Nós atuamos, desde 2016, com o intuito de levar conhecimento científico de qualidade para profissionais que atuam na área de Transtorno do Espectro do Autismo, para os próprios autistas e para os seus familiares. Então, nós realizamos palestras gratuitas mensais, além de capacitação de equipes vinculadas à Saúde que atuam com autistas.
Outro braço importante do projeto tem sido as ações de inclusão, que temos feito nos equipamentos de cultura e de lazer, aqui em Belo Horizonte, tanto de formação da equipe dos educativos desses espaços, como museus e cinemas, quanto as opções para que essas famílias possam acessá-los, de forma adequada. Nós fazemos adaptações em exposições e em sessões de cinemas inclusivas, por exemplo.
Em busca de divulgação científica, nós temos o Instagram – @praia.ufmg. Nós fazemos divulgações, por meio de resumos, com explicações mais claras, de artigos científicos de qualidade, bem como a disponibilização de materiais por meio de um drive – https://linktr.ee/PRAIA.UFMG –, onde temos recursos para crianças, adolescentes e adultos, que ficam disponíveis para que as famílias, os profissionais e próprios autistas possam acessar.
Nós temos notado um alcance muito interessante. Conseguimos chegar em estados distantes daqui da região sudeste, além de pessoas que moram em cidades mais afastadas, com poucos recursos, onde não há equipes preparadas e especializadas em autismo. Então, tem sido um trabalho muito interessante, que é vinculado à Pós-Graduação em Transtorno do Espectro do Autismo, que temos na UFMG.
Na sua avaliação, qual a importância da inclusão de jovens estudantes, bem como docentes e funcionários, com transtorno do espectro autista (TEA) nas universidades? Quais efeitos a inclusão pode gerar para a comunidade universitária?
A presença – não só a inserção, mas a permanência – dos autistas na Universidade, sejam eles estudantes, docentes ou técnico-administrativos, é muito importante, tanto para que os próprios autistas possam se desenvolver, dentro do seu potencial e contribuir em seus campos de interesse nas diferentes áreas do conhecimento, quanto para que os demais aprendam esse processo tão bonito e tão necessário que é a convivência com a diferença. A diferença é o que há de mais próprio da humanidade.
Infelizmente, a nossa geração não conviveu com uma educação inclusiva. Isso tem acontecido recentemente. Hoje, as crianças têm na escola, desde cedo, colegas que são pessoas com deficiência. Então, elas já aprendem a conviver com a diferença desde pequenas. E isso é natural para elas. Muitos de nós não tivemos essa oportunidade. Então, nós precisamos seguir fazendo essa transformação – e a inclusão é o caminho para isso. Felizmente, um caminho sem volta.
Em sua experiência, o que é necessário para garantir que a inclusão ocorra de fato?
Em primeiro lugar, nós precisamos entender que não se trata de um bicho de sete cabeças. Não é algo tão complexo assim. Nós já temos o conhecimento e conhecemos as estratégias e as adaptações ambientais e curriculares, que precisam ser feitas para que essas pessoas possam acessar, usufruir e se desenvolver dentro do espaço do Ensino Superior. Nós já temos a literatura científica que orienta sobre o que é preciso fazer. Basta acessar esse conhecimento, produzido internacional e nacionalmente de forma, felizmente, cada vez mais intensa. A partir dessas orientações que temos bem estabelecidas, conseguimos gerar esse contexto favorável – inclusive em termos jurídicos, há leis que nos orientam sobre inclusão.
Mas também é preciso que consigamos vencer as barreiras atitudinais. Historicamente, nossa sociedade se estabelece numa relação com a diferença que não é de consentimento, mas de segregação e de exclusão. Então, precisamos vencer esse paradigma e atuar de outra forma, atuar juntos, entendendo a importância da pluralidade humana. Antes de mais nada, é preciso refletir sobre as nossas posturas pessoais e institucionais, para que possamos garantir a inclusão.
Para além de iniciativas voltadas para estudantes é preciso pensar em iniciativas que acolham e promovam a efetiva inclusão de pessoas autistas também do corpo de funcionários da UFMG, sejam eles técnico-administrativos em educação, cargos terceirizados e docentes. Como você avalia o acolhimento pela Universidade de pessoas autistas da comunidade universitária como um todo? Para o corpo docente, a seu ver, quais os principais desafios que devem ser considerados para o bom desenvolvimento das atividades docentes em relação aos estudantes com transtorno do espectro autista (TEA)?
Nós precisamos entender que o autismo, apesar de ter sido descrito nos anos 1940, ainda é objeto de muito desconhecimento e desinformação. Então, para que essas iniciativas aconteçam, é preciso se atualizar, tanto para garantir a permanência dos estudantes (que entram por meio das cotas ou não), quanto para promover um ambiente de desenvolvimento, em termos laborais. O trabalho é um elemento muito importante na vida de todos nós e das pessoas com deficiência também, considerado que todos os direitos das pessoas com deficiência são garantidos para os autistas.
Eu percebo, ouvindo diversos relatos, dentro e fora da Universidade, que muitos profissionais, que deveriam estar atuando para promover a inclusão e o acolhimento, desconhecem o que é o autismo. Eles não compreendem. Até por um viés capacitista, de preconceito em relação à deficiência e de uma desatualização, eles acabam – provavelmente, involuntariamente – não atuando da forma humanitária e ética que deveriam atuar. Então, eu acho que um passo muito importante que precisamos dar é capacitar os profissionais que vão, de alguma forma, receber e acompanhar essas pessoas com autismo dentro da universidade, em seus vários níveis. Isso é fundamental, porque a nossa compreensão de autismo está em construção e, ainda, é atravessada por muito desconhecimento. Nós precisamos, em primeiro lugar, vencer essa barreira da desinformação.
O ambiente educacional é um ambiente muito desafiador para os autistas. Se entendermos que o autismo é um transtorno sociocomunicativo e estamos em um ambiente social de troca e comunicação, a Universidade, vamos perceber que essas pessoas vão viver um cotidiano desafiador. Além disso, nós temos estudado e entendido, cada vez mais, que os autistas enfrentam desafios sensoriais. Eles são muito mais atravessados pelos estímulos sensoriais do que as pessoas neurotípicas. Isso acaba gerando um cotidiano muito desafiador para os autistas.
Os docentes precisam conhecer de forma sensível essa realidade para poder gerar, para esses alunos e alunas, um ambiente de desenvolvimento. Para isso, é importante que considerem os interesses restritos dos autistas, porque estes podem ser ganchos, elementos que facilitam a conexão com os alunos. Além disso, por fim, acionar os recursos legais que essas pessoas têm, com relação à possibilidade de flexibilização curricular, de atividades, de prazos e de avaliações, para que possam permanecer e concluir o ensino superior, de forma saudável e plena.
Quais tipos de iniciativas você considera necessárias para inclusão de docentes autistas?
Sobretudo, valorizar as grandes habilidades que a pessoa tem. E compreender também que, na nossa carreira aqui na universidade, temos que exercer cargos administrativos, além de fazer ensino, pesquisa e extensão. Por isso, é preciso abrir mais espaços, dentro dessas diferentes tarefas, para aquilo em que a pessoa se reconhece bem e faz bem feito. Porque pode ser muito sofrido, por exemplo, para uma pessoa autista que tenha um embotamento social maior, estar em um cargo que demanda muita socialização.
Além disso, é preciso que a própria universidade, principalmente os funcionários da parte de acolhimento e saúde, entendam e estejam atualizados sobre o transtorno do espectro do autismo. Porque, do contrário, a pessoa já começa a sofrer desde o momento que vai passar por uma avaliação ou perícia ou que precise de algum tipo de ajuste ou de flexibilização. E se a equipe não compreender o autismo de forma atualizada e sensível, o sofrimento já começa aí. Essa dimensão da atualização das equipes de saúde e dos recursos humanos é fundamental.
Algumas universidades têm iniciativas que são muito interessantes, que dizem respeito a: oferecer um suporte, quando o autista está entrando na universidade; grupos de orientação ao longo do período na universidade, no formato de psicoeducação para os próprios autistas, mas também têm algumas universidades estadunidenses que promovem ações que orientam os colegas, para que possam aprender estratégias que gerem uma condição de cotidiano de maior acolhimento; e acompanhar o aluno quando ele sai da universidade, favorecer a inserção no mercado de trabalho, etc. Nós já temos muitas iniciativas no mundo, mas aqui, no Brasil, isso é mais raro, infelizmente.
A lei nº 12.764 de 2012 instituiu a política nacional de proteção aos direitos da pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo. Passados 10 anos, você considera que a lei promoveu mudanças efetivas na inclusão da pessoa com TEA nas universidades e no mercado de trabalho?
A Lei Berenice Viana trouxe benefícios fundamentais, garantidos para pessoas autistas. Isso está mais bem estabelecido em outros campos, que não o ensino superior. Nós ainda não temos um contexto, até de conhecimento das pessoas, sobre os seus direitos no ensino superior. Nós estamos em um processo de evolução, nos campos da educação infantil e dos ensinos fundamental e médio, mas ainda são poucos os autistas que chegam no ensino superior. A lei tem contribuído com essa transformação, lá no comecinho. Ela possibilita que os autistas e as suas famílias tenham condições de inclusão. E isso tem transformado a realidade das escolas. E com mais autistas acessando o direito à educação, desde lá de trás, isso vai impactar cada vez mais, felizmente, no ensino superior.
São mudanças efetivas que a gente tem vivido e que também impactam na inclusão laboral, no universo do trabalho. Diversas empresas, hoje, compreendem, um pouco melhor, o autismo, do ponto de vista do paradigma da diversidade, e produzem programas para acolher essas pessoas. E há incentivos para que os autistas busquem determinadas empresas sensíveis e conhecedoras dos potenciais dos autistas. Nós já temos essa realidade no Brasil: programas específicos para os autistas conseguirem passar pelos processos. Muito frequentemente, as empresas não conseguem compreender as especificidades dos autistas. Assim, eles podem não ir muito bem, por exemplo, em uma entrevista de Recursos Humanos, apesar de serem pessoas que teriam contribuições interessantes para fazer naquela realidade de trabalho.
Isso acabou de acontecer, aqui em Belo Horizonte, semana passada teve um evento envolvendo empresas, universidades e a Associação da Síndrome de Asperger no Transtorno do Espectro do Autismo de Minas Gerais (ASA-TEA/MG). Foi uma iniciativa incrível. Eu acho que isso vai acontecer, cada vez mais, e vai ser ótimo.