A universidade demonizada – Por João Carlos Salles*
Fonte: Andifes
Para Georgina Gonçalves, minha amiga Gina, Reitora da UFRB
A universidade tem sido alvo de múltiplos ataques e incompreensões, como se não mais fosse um projeto da sociedade e tivesse se tornado um problema. De desejo cívico, passou a estorvo público. E, pior, a solução dos embaraços que julgam diagnosticar não estaria na própria universidade, nem em seu atores, como se nosso espírito democrático e crítico fosse uma prova a mais de nossa inanição.
Com isso, sonhos urdidos em décadas são agora apresentados como pesadelos, cuja saída estaria antes no mercado ou na indústria.
Neste cenário, o professor/pesquisador aparece como figura trôpega e inadequada, ora vista como miserável, ora como excessivamente remunerada, de sorte que deveria transmutar-se, de personagem crítico e engajado, em indivíduo empreendedor e negociante, para merecer enfim as riquezas todas da terra.
Por outro lado, seus gestores públicos, talvez por pecados atávicos, são convidados a permanecer em cena, mas apenas como fantasmas ou encostos, que alguma reza ou exorcismo, cedo ou tarde, afastaria. Do ócio produtivo ao negócio. Será esse o deslocamento proposto?
As elites sempre têm pressa. Elas não confiam por princípio em instituições e temem até que estas possam reinventar-se. É cedo, porém — cabe-nos insistir.
A universidade mal cumpriu seu arco; não esgotou sequer suas promessas de expansão e inclusão; tampouco estendeu sua excelência por todos os rincões, nem pôde beneficiar-se da imensa riqueza cultural que se dispõe fora dela. Em suma, a universidade está em processo de fazer-se e de responder a demandas oriundas de seu próprio tecido, que são mesmo de nosso povo, em desenvolvimento científico, tecnológico e social.
Primeiro, contra sua natureza mais utópica, temos sido submetidos, nos mais variados governos, a crescente defasagem orçamentária, agora expressa em enorme bloqueio de recursos. Por distintos que o sejam, comprometidos com valores acadêmicos ou infensos a eles, por austeridade ou direta agressão, governantes não têm apostado em educação e ciência como a saída em tempos de crise.
Segundo, projetos de matriz diversa são reticentes à ideia de universidades plenas, nas quais medidas elevadas se mostram em todas as áreas do saber e em todos os cantos do país.
Por pragmatismo, talvez, aceitam um desenvolvimento desigual do sistema de ensino superior, de modo que a desigualdade regional, de fato histórico a ser corrigido, passa a doença incurável. Com isso, favorecem o modelo mais flexível das privadas, sem laço essencial entre ensino, pesquisa e extensão.
Para os eleitos, o pacote completo: a glória acadêmica e, dizem agora, o enriquecimento pessoal. Para os derrotados, que se lhes distribua ração mais insípida e talvez inodora.
A vida universitária incomoda. Não por acaso, o ataque constante, a quebra de uma aura antes sagrada, inclusive talvez por já se deixar entrever em nosso horizonte uma aura bem mais autêntica, tecida em excelência e diversidade, em requinte e inclusão; afinal, sua essência depende da realização das melhores promessas de refinamento acadêmico e inclusão, com ampliação de direitos e diversidade, vez que somos feitos da concretude de nossa gente e de nossa história, e não centros montados em vales do silício.
O ataque pode assumir a forma da intolerância ou a da técnica mais fria, sendo que a inteligência pode servir melhor à destruição que a mera brutalidade. A eficiência financeira desponta então como mantra, como se a instituição pudesse determinar-se tão só pelos interesses mais imediatos, encontrando no imperativo da sobrevivência uma justificativa para afastar interesses mais amplos e de longo prazo.
Uma eficiência dessa ordem tem a pobreza de definir-se por seus resultados e por seus preconceitos. A precedência da técnica sobre a cultura, da pesquisa aplicada sobre a pesquisa básica, da atmosfera de resultados na área de saúde ou nas exatas sobre a vagueza crítica da área de humanas são escolhas artificiais que, não sendo necessárias, antes dividem o que deveriam aproximar.
As áreas diversas têm todas direito a vida e excelência, de sorte que universidades, com pesquisa de ponta e inovação, também podem ter em seu centro uma orquestra ou corpos que dançam.
O retrocesso atual conflita ademais com as demandas de instituições que procuram traduzir de modo mais apropriado nossa diversidade de cultura, gênero e raça, e assim se mobilizam e trabalham para a produção do mérito, não para a simples reiteração de privilégios.
Investimento nada abstrato, pois se volta tanto à infraestrutura, manutenção de salas, laboratórios, espaços sofisticados, quanto às atividades acadêmicas próprias, mas à condição vez de serem definidas pelo juízo autônomo de como devem conformar-se pesquisa, ensino e extensão —um juízo próprio sobre o sentido da busca do conhecimento e da verdade, que não pode se dar sobretudo de fora, de modo heterônomo.
Projeto inteiro, múltiplo, incontrolável, a resistência ao que na universidade é virtude toma agora nova forma, adquire mais virulência. O ataque aos gestores e à própria vida universitária, o desrespeito (este sim recente, deste governo) à liberdade de escolha de dirigentes, bem como (também destes dias) o desrespeito à produção de conhecimento, ao valor da pesquisa, ao mérito acadêmico, tudo isso agride a universidade como lugar de conhecimento e liberdade.
As universidades têm grande capacidade instalada, em equipamentos e, sobretudo, em recursos humanos. Sendo lugar da ciência, são também o espaço privilegiado de gestos inovadores. Não por acaso, arranjos produtivos locais ou nacionais são fonte específica de captação de recursos. Sim, para os desavisados, as universidades públicas captam recursos. Não obstante, dependem de recursos públicos.
E é muito bom que seja e continue a ser assim. Não há aqui prejuízo, pois o processo da educação não envolve simplesmente um custo, mas sim um investimento da sociedade em seu futuro.
Sim, o futuro. Um neologismo agora nos provoca, sendo porém de motivação equívoca e gosto duvidoso. O verbo futurar, não pronominal, seria sinônimo de conjecturar, de antecipar, ter a pré-ciência. Ora, para conjecturar, um projeto faz estudos de viabilidade, antecipa, simula, pondera e, mais ainda, escuta primeiro os interessados, deixando-os conhecer e apresentar propostas, pois a construção de programas, para dar conta das múltiplas finalidades presentes no tecido acadêmico do país, só pode começar por um gesto de escuta, paciente e profundo, que costumamos chamar de democracia.
O risco do uso indevido ou imprudente da métis, da inteligência astuciosa, é conhecido; pode levar-nos a um ente desguarnecido da mais mínima proteção e a um Prometeu enfim acorrentado. É, porém, como neologismo que essa versão do verbo, pronominal e no imperativo, pretende evocar um certo tornar-se futuro, um ir ao encontro do futuro, como se pudéssemos fazer uma viagem dessas, sem que ela, contudo, esteja instalada no conjunto de nossos sonhos e necessidades. Por isso, o programa “Future-se” corre o risco de usar contra nós até nossas virtudes e alguns de nossos desejos.
Sem dúvida, as universidades públicas enfrentam problemas, alguns estruturais. Um diagnóstico sensível, do olhar experiente de quantos desenvolvem projetos arrojados de pesquisa, percebe dificuldades para gestos mais empreendedores, que não atentam por si contra a natureza pública da instituição.
Uma avaliação dos processos de ensino também reconhece logo a gravidade dos índices de evasão, que são ainda maiores nas instituições privadas e dependem, em muito, de fatores extrínsecos, mas solicitam toda atenção.
E as metas de expansão estão longe de ser cumpridas, assim como o processo de crescimento nem sempre levou em conta a conjugação de fatores necessários e suficientes para a abertura de novos cursos, como infraestrutura consolidada, capacidade acadêmica e demanda social.
Selecionemos, em muitas, apenas uma finalidade: o interesse da inovação, cujo cumprimento efetivo ainda está longe de conjugar sociedade e grupos de pesquisa. Ora, se a inovação, em nosso país, ocorre em centros de pesquisa, é claro o diagnóstico de que não se dará à margem da universidade. Toda uma cadeia tem esse elo como ponto de partida.
Entretanto, se há obstáculos efetivos para a inovação, ela não se torna medida de si mesma, nem deve desligar-se do interesse originário da pesquisa. Não se removem obstáculos de qualquer modo, ou essa finalidade, que hoje enfrenta problemas, fará definhar ou até suprimir outras finalidades, podendo a universidade, em muitos casos, deixar de realizar pesquisa, para simplesmente oferecer consultoria —em um tal cenário, a capacidade de captação, antes determinada por valores acadêmicos e voltada ao bem comum, torna-se selvagem e, no limite, desprovida de natureza acadêmica.
É legítimo o esforço do MEC em procurar soluções para o financiamento. Com isso, reconhece a dramática defasagem orçamentária sofrida pelas universidades. Também é natural que procure identificar núcleos que considera mais dinâmicos.
Nota-se uma inflexão no discurso, pois, ao início deste governo, mais se depreciava a universidade. Resta saber se essa mudança conserva o ranço de um ataque ao que, para nós, são valores inegociáveis. Por isso, é sempre nosso dever lembrar a todos a riqueza inteira do modelo público de ensino superior, não podendo o MEC, que tem responsabilidades com todo o sistema, ser gestor apenas daquela parte para a qual acaso se incline.
Qualquer programa vale na medida dos valores que pretende realizar, dos princípios que respeita, e nunca apenas por seus resultados. Temos critérios, afinal, para saber se uma proposta dá conta da inteireza do problema ou se é enviesada e parcial.
Em sendo assim, um programa para o sistema de universidades públicas deve garantir: a unidade do sistema, não devendo haver regras que se apliquem a algumas partes e não a outras; a comensurabilidade, de sorte que o sistema mesmo sirva para o combate à desigualdade regional; a diversidade, como forma de garantir a riqueza oriunda de cor local; a autonomia, sendo preciso confiar na sabedoria de cada instituição, na sua capacidade de escolher caminhos, para o que é preciso proteger-lhe a integridade; a expansão do sistema, que, em uma sociedade como a nossa, coloca-se ainda como meta necessária.
Qualquer programa deve, portanto, ser avaliado não só pelos recursos que pode captar, vez que não somos um negócio, mas sim pela destinação que pode dar a quaisquer recursos. Desse modo, propostas que se pretendem arrojadas podem mostrar-se, sob essa luz, incipientes, bastante distantes do refinamento e do porte desejáveis.
Não podemos, pois, lamentar que propostas sejam apresentadas. Apenas lembraremos sempre que não podem ser aceitas, se implicam uma renúncia à nossa natureza.
Assim, neste momento decisivo para as universidades, não podemos deixar de nos mobilizar em todos os espaços (do parlamento às ruas), mas usando sobretudo os recursos mais cuidadosos e radicais da crítica conceitual que tão bem nos caracteriza. Cabe-nos invocar palavras e argumentos, exigindo que se respeite o espaço público como lugar de demonstração, ou melhor, deslocando o refinamento da universidade para o espaço público em que se deve decidir nosso destino.
*João Carlos Salles é reitor da Universidade Federal da Bahia e presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes)
Artigo originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo, em 24 de agosto de 2019