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Janeiro Branco 2023: “A vida pede equilíbrio”?

O primeiro mês do ano traz consigo uma campanha denominada “Janeiro Branco”. Trata-se de um movimento que se repete ao longo dos meses do ano, cada um com uma temática específica. Em janeiro, o tema escolhido é a saúde mental. De acordo com o site oficial da campanha[1], o mês é escolhido em função de ser mês de reflexões, revisão de metas do ano anterior e estabelecimento de novos objetivos. O tema do mês de janeiro de 2023 é “A vida pede equilíbrio”. Seria esse equilíbrio possível diante de um cenário de produção cada vez mais acelerado e intenso e das dificuldades de acesso aos direitos básicos que atinge milhares de pessoas? Para que a vida alcance algum “equilíbrio”, é necessário que as condições de vida material garantam tal direito.

As condições de saúde mental estão íntima e intensamente atreladas às condições materiais de vida, que incluem as condições de moradia, a segurança alimentar, o trabalho, as relações sociais, econômicas e mesmo políticas públicas. O sofrimento mental aponta, sobremaneira, para os problemas dessas condições sociais em que existimos.  Portanto, não é possível promover plenamente a  saúde mental onde falta comida, teto, trabalho, lazer, relações sociais e segurança. Abordar o tema a partir de uma perspectiva puramente individualista e, mesmo psicologizante, nos coloca como responsáveis únicos pela nossa saúde mental. No entanto, , nossa subjetividade e o nosso bem-estar emocional são materiais, ou seja, um “indivíduo” é sempre produto da interação com seu meio.

Campanhas de “conscientização” como a proposta pelo “Janeiro Branco” trazem à tona um tema importante para ser debatido coletivamente. No entanto, reiteramos que é inerentemente insuficiente, na medida em que transfere ao indivíduo a responsabilidade pela própria saúde mental. As condições de vida pedem equilíbrio e mais que isso, pedem equidade e garantias. Além disso, essa discussão precisa ser atravessada pela noção de interseccionalidade: o tema saúde mental deve ser tratado como um problema de saúde pública ligado ao racismo, ao machismo estrutural, ao capacitismo, ao etarismo, às relações de poder e de classes. Todas essas sobreposições de formas de opressão e poder vão configurar e afetar profundamente a subjetividade e saúde mental de indivíduos, bem como de um coletivo de maneira geral.

Passamos por um período político de obscurantismo e negacionismo científico, com profundos retrocessos das políticas públicas de saúde mental que se balizavam pelos princípios da reforma psiquiátrica. A começar pelo estabelecimento do teto de gastos (EC 95), que não só impossibilitam o avanço nos investimentos na saúde, promulgada com direito de todos e dever do Estado pela Constituição de 1988, como também proporcionou um intenso sucateamento e promoção da lógica neoliberal privatista para o tratamento de saúde, especialmente da saúde mental. Como resultado prático disso, tivemos o incentivo e financiamento de comunidades terapêuticas e da lógica proibicionista e de medicalização desenfreada para conter o sofrimento mental, reforçando ainda mais a responsabilização do próprio sujeito pelo seu adoecimento[2].

Nesse novo ciclo que se estabelece, torna-se urgente a revogação de tal medida, bem como a revogação de portarias e decretos que colocam em cheque as políticas baseadas em evidencias científicas oriundas na Reforma Psiquiátrica.  A promoção de saúde mental requer garantida de direitos , acesso às políticas públicas efetivas e de qualidade, coletividade, equidade e dignidade.

 

[1] https://janeirobranco.com.br/

[2] CRUZ, Nelson Falcão de Oliveira; GONÇALVES, Renata Weber; DELGADO, Pedro Gabriel Godinho. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, educação e saúde, v. 18, 2020.