2020 inicia com mais um ataque à educação pública, gratuita e de qualidade: nova minuta do Projeto de Lei que visa implementar o Future-se é apresentada
Em 3.1.2020, por meio da Casa Civil da Presidência da República, o Ministério da Educação (MEC) divulgou novo Projeto de Lei que visa implementar o programa Future-se no âmbito das Instituições Federais de Ensino brasileiras.
Justamente porque aprofundam a perspectiva de “mercantilização” e a “empresarização” das instituições federais de ensino e suas pesquisas, as modificações pontuais realizadas nesta nova versão continuam a se mostrar extremamente preocupantes para o contexto universitário.
Fato é que a nova proposta não logrou êxito em eliminar as incertezas que o Future-se traz à comunidade acadêmica. Estão ainda mais evidentese sérias as lacunas normativas presentes no projeto e, para além disso, o aumento exponencial do poder discricionário do Ministro da Educação, sem que tenha se alterado o objetivo de atender aos interesses da iniciativa privada em detrimento da construção de uma Universidade pública, gratuita e de qualidade.
Apesar do Projeto de Lei, em alguns dispositivos,mencionar o respeito ao artigo 207 da Constituição Federal, que prevê a autonomia universitária, o resultado prático do projeto faz com que essas referências não deixem de configurar expressões vazias, na medida em que distribuirá recursos orçamentários “adicionais” e captados por entidades privadas apenas às instituições que aderirem ao Future-se e atenderem metas de desempenho definidas pelo MEC – que podem não estar atreladas aos verdadeiros interesses públicos que as Universidades sempre preservaram.
Sabe-se que sem recursos, as Universidades e Institutos Federais não conseguirão exercer a autonomia didático-científica, administrativa e financeira previstas no art. 207 da CRFB/88, motivo pelo qual o Future-se, em sua essência, é evidentemente inconstitucional.
É importante relembrar que o programa Future-se se organiza em formato de adesão. Embora nessa nova versão os “contratos de desempenho” passem a se chamar “contratos de resultados”, a figura permanece a mesma: será firmado um acordo entre a instituição de ensino e o MEC para estabelecer indicadores de resultado que permitirão o acesso a benefícios pecuniários especiais, agora chamados “benefícios por resultado” para além dasdotações orçamentárias regulares a que se referem o art. 212 da Constituição e o art. 55 da Lei nº 9.394/1996.
É importante lembrar, entretanto, que os investimentos em educação estão congelados em decorrência da EC nº 95/2016 (Novo Regime Fiscal) epermanecem sujeitos a novos contingenciamentos. Ademais, quando os outros projetos adotavam um prazo de adesão ao programa após a promulgação da lei, a nova propostaainda não define se esse prazo existirá.
Após a celebração do contrato de resultados,as IFEspoderão escolher uma ou mais Organizações Sociais e/ou Fundações de Apoio para realizar os objetivos dos planos de trabalho e atingir os resultados acordados. Entretanto, para além das lacunas já existentes nos projetos anteriores, o projeto apresentado no início do mês deixa a situação ainda mais gravosa, pois elimina grande parte dos artigos que se destinavam à pormenorização da forma de contratação entre as IFES e essas instituições privadas.
Inovação que merece destaque refere-se à substituição da hipótese de doação para as Organizações Sociais de bens imobiliários de titularidade da União para integralização de quotas no antigo Fundo Soberano do Conhecimento – FSC com a nova possibilidade de as próprias Universidades e Institutos Federais celebrarem contrato de cessão de direito de exploração econômica de seus bens às Organizações Sociais e Fundações de Apoio, inclusive com ou sem contraprestação de recurso financeiro para as Universidades e Institutos (art. 14, §2º).
O projeto inclui a possibilidade do Instituto Militar de Engenharia, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica e do Colégio Pedro II participarem do Programa Future-se (art. 36).
Outra das principais mudanças ocorreu no sistema de benefícios concedidos pela adesão ao programa. A princípio, as propostas determinavam que os benefícios com a adesão ao Future-se se consubstanciavam na concessão de bônus aos docentes e o acesso ao Fundo Soberano do Conhecimento e o Fundo Patrimonial do Future-se; posteriormente, foi eliminada a possibilidade de concessão de benesses aos professores. A proposta atual, contudo, adiciona “benefícios”: para além de acesso aos recursos do Fundo Patrimonial (art. 27) e doFundo de Investimento (art.28), as instituições que aderirem ao Future-se terãorecursos orçamentários adicionais do MEC e concessão preferencial de bolsas CAPES (art. 6º, §2º).
Ou seja, o Governo Federal assume que poderá distribuir recursos orçamentários adicionais com critérios subjetivos para as instituições que aderirem ao Future-se, além de inclusive condicionar o recebimento de bolsas de pesquisa da CAPES à adesão ao programa, colocando os pesquisadores na situação de insegurança generalizada ao cumprimento de indicadores de desempenho – que, na nova versão, passam a ser determinados unilateralmente pelo Ministério da Educação (art. 7º).
Mais uma mudança significativa ocorre nos dois Fundos previstos para o financiamento das atividades do programa. O primeiro, o Fundo Patrimonial do Future-se, seria gerido por associação privada sem fins lucrativose instituído segundo as diretrizes da recente Lei de Fundos Patrimoniais (Lei Federal nº 13.800/2019), sendo possível que bens públicos pudessemintegralizar esse fundo patrimonial, o que era vedado na lei até então vigente (art. 17 da Lei Federal nº 13.800/2019).O segundo, por outro lado, chamado Fundo Soberano do Conhecimento -FSC,seria um fundo multimercado composto por diferentes classes de ativos, tais como ações, renda fixa, câmbio e demais ativos financeiros e imobiliários, inclusive públicos, nos termos da Lei Federal nº 13.240/2015.
No novo projeto, entretanto, a figura do Fundo Soberano do Conhecimento – FSC foi menos destacada, mas com a manutenção da previsãoda possibilidade de não apenas a União, mas também as próprias Universidades e Institutos Federais aportarem recursos e imóveis em fundo de investimento multimercado – no entanto, sem nomenclatura específica – instituído para atender as finalidades do Future-se (art. 28).
Além dessa previsão de utilização de recursos no mercado de capitais, o projeto também continua a prever a criação de Fundo Patrimonial do Future-se (art. 26) –sem indicar uma nomenclatura específica – para gerir, arrecadar e destinar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para a execução de programas, projetos e demais ações de interesse da educação. A existência do fundo patrimonial do Programa Future-se não obsta a criação de fundos patrimoniais específicos para as Universidades e os Institutos Federais.
Na nova versão, foram excluídas todas as peculiaridades sobre a forma de gestão administrativa desses fundos ou integralização de cotas, havendo meraindicaçãode que a constituição e gestão serão definidas em estatuto e por ato do Ministro da Educação. Também não há melhor definição sobre a forma de alocação dos recursos provenientes dos Fundos.
Questão também relevante refere-se a continuidade da utilização de Start-ups e Sociedades de Propósito Específicos – SPE para fomentar o eixo do empreendedorismo. Na nova proposta, existe a mera possibilidade de recursos das referidas empresas serem direcionados para as IFEs (art. 20, par. único e art. 23, §6º), quando no antigo projeto era assegurado à Universidade ou ao Instituto Federal percentual do lucro auferido pela SPE, caso tivesse como sócio agente público vinculado às referidas instituições.
Por fim, a proposta volta a instituir o Dia Nacional do Estudante Empreendedor, a ser comemorado, propositalmente, no primeiro sábado após o Dia do Trabalhador (art. 35).
A nova proposta apresentada consiste em um Projeto de Lei que permanece sob consulta pública até 24 de janeiro. Após esse prazo, o Governo Federal poderá acolher ou não sugestões encaminhadas por meio da consulta pública e, ato contínuo, deverá encaminhar o Projeto de Lei para deliberação no Congresso Nacional.
Nesse sentido, é extremamente importante a mobilização da comunidade acadêmica.
Além dos movimentos emancipatórios na Universidade e nas ruas – espaços coletivos de debate livre e plural – necessária também a interlocução com os deputados federais e senadores mediante contato direto com as suas assessorias e apoiadores ou ainda por telefone, whatsapp, e-mail e mensagens nas redes sociais, a fim de demonstrar que referido projeto não tem apoio daquelas e daqueles que acreditam e defendem a Constituição Cidadã de 1988, que garante uma Universidade pública, gratuita e de qualidade.
Belo Horizonte, 8 de janeiro de 2020.
Sarah Campos e Luísa Santos, assessoria jurídica do APUBH