Teto de Gastos, um obstáculo para a reconstrução nacional
Em 31 de agosto de 2016, o golpe jurídico-parlamentar atingia o seu objetivo, com a deposição da presidenta eleita Dilma Rousseff. A partir daí, acompanharíamos a implementação de um projeto neoliberal no Brasil, a começar pelo governo ilegítimo de Michel Temer. Contrariando abertamente a política econômica escolhida nas urnas, seguiu-se uma escala de retirada de direitos da população e de golpes à nossa Democracia – que ainda vinha sendo construída, desde o período pós ditadura militar.
Ainda no ano de 2016, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional (EC) 95, apelidada de “Teto de Gastos”. A medida previa que, por vinte anos, o orçamento destinado às despesas sociais primárias seria limitado pelo valor da inflação acumulada do ano anterior, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Na prática, isso significa congelar o investimento federal em políticas públicas até 2036.
Pela proposta da EC 95, a cifra levantada pelo regime de austeridade teria como destino o pagamento dos juros e amortizações da dívida externa do Brasil. Uma dívida superfaturada e fraudulenta, como comprovam os estudos e números apresentados pela Auditoria Cidadã da Dívida (ACD). Em outras palavras, o governo economiza o que foi arrecadado em impostos pagos pela população, mas ao invés de investir em programas e serviços para a própria população, o recurso público é injetado em rentistas e investidores estrangeiros.
O governo seguinte prosseguiu com a EC 95. O projeto neoliberal no governo Bolsonaro foi aprofundado e nem mesmo a crise econômica e sanitária, em que o Brasil mergulhou em decorrência da pandemia de Covid-19, foi o bastante para que a queda do teto entrasse em pauta. Inclusive, a “responsabilidade fiscal” tem sido usada como pretexto para diminuir o investimento em setores fundamentais a permanência de políticas públicas. Na última terça-feira (22/11), por exemplo, o Ministério da Economia do governo Bolsonaro anunciou um bloqueio de R$ 5,7 bilhões no Orçamento deste ano. O novo corte é o quinto em 2022. Ao somarmos com os bloqueios anteriores, o valor contingenciado chega a R$ 15,4 bilhões. Agora, aguardamos a definição de quais áreas serão penalizadas.
E mesmo com a política de arrocho econômico, até mesmo o governo Bolsonaro percebeu a impossibilidade de gerir o país com as amarras da EC 95. Ao longo de quatro anos de mandato, foram gastos cerca de R$ 794,9 bilhões acima do teto. Os números constam em levantamento feito pelo economista Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV-IBRE), por encomenda da BBC News Brasil. Ainda no primeiro ano de gestão, a flexibilização já começou a acontecer, somando gastos que chegam a R$ 53,6 bilhões. Isso antes mesmo da pandemia.
Democraticamente escolhido pela população, o governo Lula terá a tarefa de reconstrução nacional, após os retrocessos impostos pela necropolítica do governo Bolsonaro. E não podemos ignorar o obstáculo que o Teto de Gastos representa neste processo. Afinal, a EC 95 é um dos principais instrumentos usados para institucionalizar o sucateamento da atuação estatal junto à população.
Frente a este cenário, o governo eleito articula junto ao Congresso Nacional a aprovação de uma proposta de emenda à Constituição para “furar” o teto de gastos, liberando o investimento de R$ 198 bilhões fora do Teto de Gastos. Com isso, a proposta – conhecida como “PEC da Transição” – daria condições para que o Estado invista em áreas fundamentais, tais como SUS (farmácia popular), educação (merenda escolar), entre outras. Além do mais, a nova gestão também precisará arcar com o rombo nos cofres públicos deixado pelo atual governo.
Antes mesmo de aprovado, o “furo no teto” já tem causado reações. Mais uma vez, o discurso é de que o Estado deve se submeter aos interesses do mercado financeiro. Esse é o caso de uma carta enviada ao presidente eleito Lula, na semana passada. O documento, assinado pelo ex-presidente do Banco Central, Arminio Fraga, pelo ex-presidente do BNDES, Edmar Bacha, e pelo ex-ministro da Fazenda, Pedro Malan, expressa preocupações em relação ao descumprimento da responsabilidade fiscal por parte do governo brasileiro.
Em resposta, na última segunda-feira (21/11), um grupo de economistas também encaminhou uma carta ao presidente eleito. Nela, os argumentos apresentados para defender o regime de austeridade foram qualificados como falaciosos. O documento é assinado por Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda, por Luiz Fernando de Paula, professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do GEEP/IESP-UERJ, e pelos economistas José Oreiro, Kalinka Martins e Luiz C. Magalhães. Apesar de não defenderem o fim do teto de gastos, ao menos, destacou-se que a regra fiscal precisa ser substituída. O documento reforça, ainda, que o Orçamento da União tenha espaço para o combate à crise social.
Nesse sentido, o economista Marcio Pochmann, professor da UFABC e da UNICAMP, ratificou: “colocar o pobre no orçamento é fundamental para construir um Brasil diferente do que temos hoje”. Em entrevista à Revista Brasil TVT, ele defendeu os investimentos públicos em áreas sociais, por meio de mudanças nas perspectivas econômicas adotadas pelo Governo Federal para contemplar a população de baixa renda.
A derrota democrática do governo Bolsonaro foi decisiva, porém não o bastante. O processo de reconstrução democrática de nosso país ainda está no início. Para todas as pessoas que acreditam no papel do Estado no enfrentamento das desigualdades sociais – destacando-se, nesse sentido, os serviços públicos que são prestados ao povo –, a revogação do Teto de Gastos (EC 95) deve ser uma bandeira de luta. O Estado não deve estar a serviço do mercado financeiro, mas de sua população.