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Pesquisa de mestrado na UFMG analisa sofrimento mental no corpo docente

O trabalho docente impõe uma série de dificuldades e obstáculos, que geram sobrecarga e potencializam o surgimento de sofrimentos mentais. No entanto, essa questão é por vezes minimizada, ocultada e estigmatizada. “O professor que se depara com a vivência de sofrimento hoje na universidade é convocado a normalizar suas expressões, buscando apoio no que é legitimado socialmente”. Essa é uma das conclusões da dissertação “Sofrimento mental contemporâneo na universidade: a perspectiva docente”, realizada em 2019 por Juliana Coelho Antunes, psicóloga da UFMG e integrante da Rede de Saúde Mental da instituição. Na entrevista para o APUBH, ela conta da sua percepção enquanto psicóloga da UFMG, sobre as questões que contribuem para o sofrimento mental dos docentes e as dificuldades de confrontá-lo em nível institucional. Juliana também participou da Live #3 do APUBH, “Sofrimento, adoecimento e trabalho docente: em busca do cuidado”, que pode ser conferida neste link.

 

  • Fale-nos sobre a sua pesquisa.

 A ideia desta pesquisa surgiu a partir da constatação da insuficiência da bibliografia sobre a saúde mental dos docentes das universidades públicas visto que os estudos se concentram na situação de estudantes e pouco se reflete sobre a situação dos professores e das professoras. Em minha rotina de trabalho como psicóloga da UFMG, observava uma baixa procura dos professores pelo acompanhamento funcional (em comparação com os TAE’s), o que chamava a atenção. Além disso, os dados do setor de saúde que tínhamos disponíveis até então, na PRORH, mostravam uma prevalência significativa de afastamentos por transtorno mental e comportamental, mas não distinguiam o quanto destas ocorrências se referia aos professores. Desta forma, desenvolvemos esta pesquisa no intuito de qualificar a experiência de sofrimento mental dos professores e professoras, criando um espaço para que este sofrimento pudesse ser discutido, conferindo-lhe sentido, a partir de uma hipótese inicial de sua invisibilização dentro da universidade pública.

A pesquisa, qualitativa, é resultado de um projeto de mestrado no Programa de Psicologia Social da UFMG. Foram dois anos de trabalho: entre 2018 e 2019. O objetivo ampliado desta pesquisa foi dar visibilidade à situação dos professores e, assim, poder contribuir para criação de políticas e outras estratégias que visem a transformação de questões sensíveis à categoria hoje na universidade pública que, de certa forma, estão relacionadas à vivência de sofrimento. Procurando evidenciar o sofrimento dos professores manifestado na universidade estamos, portanto, evidenciando dificuldades e contradições existentes na própria universidade e no trabalho e desenvolvido nela.

 

  • Quais foram as conclusões da sua pesquisa e de que modo o APUBH colaborou para a sua realização?

Este trabalho foi desenvolvido em parceria com o APUBH, que nos possibilitou o contato com estes professores de duas formas. A primeira através da minha participação enquanto pesquisadora nas Rodas de Conversa que aconteceram entre 2018 e 2019, cujo objetivo foi discutir a saúde mental e qualidade de vida dos professores e professoras. A participação nestes encontros foi fundamental para ter acesso a informações e discussão sobre o assunto. Posteriormente, foram realizadas entrevistas individuais com alguns professores para que pudéssemos aprofundar no assunto de uma forma semiestruturada, adentrando no sofrimento individual, mas sempre com o olhar para o coletivo: o que sofrimento vivenciado por este professor diz sobre a universidade e sobre o trabalho docente? As entrevistas também foram mediadas pelo sindicato.

Concluímos que o professor que se depara com a vivência de sofrimento hoje na universidade é convocado a normalizar suas expressões, buscando apoio no que é legitimado socialmente. Ou seja, este professor tende a soluções individualizantes: um adoecimento (que pode acabar resultando em afastamentos do trabalho), seja pela busca da judicialização (na forma de uma queixa que remete ao campo mais genérico dos direitos trabalhistas). Este dado nos leva a inferir que o sofrimento vivenciado parece ser tomado como mero efeito adverso, colateral e uma anomalia, quando na verdade é revelador e talvez possa encontrar espaço nas políticas institucionais de gestão de relações de trabalho.

O segundo elemento importante são os grandes temas que surgem na pesquisa ao tentar identificar onde este sofrimento pulsa para os professores e professoras. De forma geral, identificamos que as questões que surgem, ao procurar descrever o sofrimento mental docente, fazem referência à: vulnerabilidade, menos valia, sensação de insuficiência, medo de exposição, falta de motivação, falta de apoio, desamparo, isolamento, solidão, excesso de pressão, assédio moral, violência psíquica, dentre outros aspectos que tecem o “elo frágil” nas relações interpessoais de trabalho.

Estes indicadores parecem surgir a partir de duas situações fundamentais, indicada pelos professores como fonte de sofrimento na universidade: 1) o relacionamento com os pares que apontou para as relações de poder/hierarquia e para o individualismo e 2) os modos de organização do trabalho que fazem referência ao “produtivismo”, às ”avaliações” e aos “encargos administrativos”. Entendemos que estes contextos contribuem para a vivência de sofrimento em vários aspectos, os quais tentamos explicitar na pesquisa realizada e que será, em breve, publicada em forma de artigo.

  • Qual a diferença entre dor, sofrimento e doença mental?

No senso comum, o termo “sofrimento mental” é tomado como sinônimo de tristeza, dor, angústia, ou seja, sentimentos que fazem parte da vida, mas que têm significações diferentes para cada um. Neste trabalho, uma diferenciação conceitual se dá apenas para tentar desvincular o sofrimento da patologia, ou seja, não criar diagnóstico para algo que diz da vivência humana.

O que vimos na pesquisa é a transformação categórica do sofrimento em adoecimento. Ou seja, sofrer significa estar doente, retirando todo o potencial que este sofrimento tem de transformar as situações. O indivíduo se restringe a si mesmo, limitando a interlocução com o outro, tornando-se passivo na espera que alguém tome uma atitude por si na sua dor.

Portanto, acreditamos ser importante operar com o conceito do sofrimento em sua dimensão social e coletiva, que possibilite a construção de respostas que tenham como foco as situações a serem enfrentadas e superadas em determinados contextos, mesmo sabendo da importância das experiências individuais de cada um. É importante dar voz ao sofrimento, sem que, necessariamente, ele tenha que se transformar em uma questão psiquiátrica, já que é revelador e talvez possa encontrar espaço nas políticas institucionais de gestão de relações de trabalho.

 

  • Fale sobre como a excessiva valorização da quantidade de produção científica interfere na saúde mental dos pesquisadores.

Esta pergunta se refere ao “produtivismo acadêmico”, que devemos diferenciar de produção científica. Quando falamos em produtivismo, falamos de uma dinâmica onde há uma pressão ou estímulo à produção que superdimensiona a quantidade, visando o cumprimento de exigências determinadas pelas normas. No cenário caracterizado como “produtivista” a avaliação de produtividade para credenciamento e progressão individual causa tensão, sendo sentida como uma avaliação de competência profissional de ordem individual que tende a um padrão corrosivo e contraditório, especialmente quando há intolerância a períodos de latência, além de discrepância valorativa entre os produtos da pesquisa, da extensão e do ensino, que não incentiva o trabalho em equipe, cooperativo.

Esta dinâmica pode acabar distanciando a vida acadêmica da prática intelectual e, como alguns autores sugerem, associando-o a uma lógica de mercado. Tudo isso coloca em vulnerabilidade o professor, já que as pressões e exigências de produtividade se sobrepõem a formação e ao bem estar dos pesquisadores. Além disso, não contribui para um ambiente colaborativo, já que surgem disputas para alocação de recursos para pesquisas, interferindo, também, nas relações estabelecidas com os pares. Estas pressões por produção podem chegar a um ponto em que o próprio professor, inserido no sistema, não tem condições de questionar este mesmo sistema, diante de metas sempre mais desafiadores e inalcançáveis. Tudo isso, claro, interfere na vida acadêmica deste professor e pode contribuir para a vivência de sofrimento mental.

  • Como o fato de o docente lidar individualmente com o sofrimento gera uma percepção de invisibilidade do sofrimento docente dentro da universidade? Como isso interfere na definição de estratégias para tratar o problema?

Quando tentamos identificar as estratégias de enfrentamento deste sofrimento pelos professores, constatamos que são estratégias, majoritariamente, individuais. Ou seja, cada um busca individualmente formas de lidar com a situação relacionada com o sofrimento vivenciado. As questões não ganham formato institucional e não chegam ao conhecimento da instituição. Um exemplo disso seria o descredenciamento deliberado da pós-graduação. Isso aparece como um sinal de “menor competência” e não revela as contradições que dizem respeito ao produtivismo. Outro exemplo importante é o isolamento individual que, aliado à característica do trabalho do professor, faz com que este busque manter um contato mínimo com a universidade, na tentativa de se afastar do ambiente que causa sofrimento.

Ao invés de procurar as chefias e coordenações, o professor procura o sindicato para tentar construir uma resposta protetiva, como constatamos, e assim os problemas se deslocam, pois as questões institucionais são individualizadas, tomando a forma de um problema pessoal. Claro que as estratégias não se esgotam nas acima citadas, mas foram algumas identificadas que são importantes serem colocadas no debate. A nosso ver, são estratégias legítimas, mas arriscadas, já que não permitem com que o sofrimento se manifeste e seja discutido e transformado.

  • Conhecido como “pedágio”, o estágio probatório tornou-se um período de grande sofrimento e fragilidade para o docente recém-ingresso na universidade devido à um excesso de demandas e responsabilidades que lhe são atribuídas sem uma preparação prévia ou o apoio necessário para exercê-los. Como a instituição poderia agir para evitar esse sofrimento?

Este termo foi usado em entrevista. É a fala de um professor novato que fala das atribuições excessivas. A título de exemplo, muitas vezes, os recém contratados são convocados a assumir encargos administrativos sem possuir informações e vivência universitária suficientes para conduzir um bom trabalho.

Acredito ser importante um acompanhamento mais de perto destes professores durante o estágio probatório, já que conflitos gerados com seus tutores, outros colegas e com a instituição de forma geral podem influenciar um desfecho negativo deste período avaliativo. Mais uma vez, deve-se ter um canal aberto para que este professor possa procurar acompanhamento em suas dificuldades diárias dentro da instituição, mas que não se limite apenas à escuta individual. Este canal existe na universidade, mas muitas vezes não tem autonomia para agir sobre os processos de trabalho e sobre questões mais densas que perpassam as relações de trabalho.

O sindicato também possui um papel importante, já que recebe denúncias e queixas de professores que se deparam com diversas dificuldades ao entrar na universidade, muitas vezes transformados em processos jurídicos. Como dissemos, é importante pensar este período como de grande vulnerabilidade para o professor e abrir espaço para propostas de ação que impactem a categoria como um todo, indo além da condução de casos jurídicos individuais.