Entrevista com o elenco da peça “Banho de Sol”
“Num momento tão delicado em que a arte e a educação são alvos do retrocesso, essa parceria que fomenta a arte, fortalece os laços, é ato de resistência e demonstra que precisamos estar em coletividade para buscar formas de sairmos da barbárie”, aponta uma das integrantes da Zula Cia. de Teatro. O espetáculo será transmitido, em formato de peça teatral comentada, com o apoio do APUBH UFMG+.
O APUBH UFMG+ conversou com as atrizes Gláucia Vandeveld, Talita Braga, Kelly Crifer e Mariana Maioline, da Zula Cia. de Teatro. As atrizes são as responsáveis pelos textos, criação e atuação do espetáculo teatral “Banho de Sol”, que será transmitido em formato de Live Comentada, com o apoio do APUBH UFMG+. Assista à atividade cultural, na próxima sexta-feira (08/10), às 19h, no Canal do Sindicato no Youtube: https://youtu.be/fA3FWjRvX7A
A transmissão do espetáculo integra a programação de atividades do APUBH UFMG+ em comemoração ao Dia das Professoras e dos Professores, celebrado no dia 15 de outubro. A data também marca o primeiro ano da Gestão Travessias na Luta, eleita para a gestão do APUBH UFMG+ no biênio 2020/2022.
APUBH UFMG+: O Brasil está passando por um momento, particularmente, complexo. Enfrentamos tanto os efeitos da pandemia da Covid-19, quanto os ataques do Governo Bolsonaro. Na opinião de vocês, qual o papel da arte e da cultura para lidarmos com um momento caótico, como o atual?
Gláucia Vandeveld: Para além do enfrentamento da pandemia da Covid-19 que corretamente obrigou a adoção das medidas de isolamento social, acarretando a paralisação das atividades artísticas e culturais, a arte e a cultura do país vêm sofrendo ataques sistemáticos como a intolerância, o autoritarismo, o obscurantismo, o conservadorismo, todos propagados no fértil ambiente criado pelo grupo que ascendeu ao poder, em especial ao governo federal, na gestão que teve início em 2019. Esses frequentes ataques e a falta de uma política pública voltada para o setor fez com que artistas e produtores culturais criassem redes de apoio e não nos paralisou. A arte e a cultura são lugares de reflexão, de discussão e sua asfixia advém do não apoio da classe artística, do setor cultural a esse governo, um revanchismo.
Com a chegada da pandemia – em meio à proibição das aglomerações, no isolamento social – a música, o teatro, a literatura, a arte em geral, foram recebidas como escapes fundamentais da solidão, como alimento da alma, como alento e esperança de tempos e vidas sãs. Seja através de livros impressos, os CD de música, seja através da internet em um volume muito maior, ou ainda nas janelas e varandas das casas, por todos os lugares do mundo, assistimos à ampliação do consumo de produtos culturais, da valorização da cultura e do uso do tempo diário com atividades de arte e cultura, o que confere a força e importância do segmento em resistir. Resistimos graças ao apoio do público, as políticas públicas municipais, a Lei Emergencial de Cultura Aldir Blanc uma iniciativa da Deputada Benedita da Silva, que é Presidente da Comissão de Cultura da Câmara de Deputados, com a relatoria e a sistematização feitas pela Deputada Jandira Feghali, que também integra a Comissão e aos parceiros como o APUBH UFMG+.
“Para além do enfrentamento da pandemia da Covid-19 que corretamente obrigou a adoção das medidas de isolamento social, acarretando a paralisação das atividades artísticas e culturais, a arte e a cultura do país vêm sofrendo ataques sistemáticos como a intolerância, o autoritarismo, o obscurantismo, o conservadorismo, todos propagados no fértil ambiente criado pelo grupo que ascendeu ao poder, em especial ao governo federal, na gestão que teve início em 2019” – Gláucia Vandeveld, da Zula Cia. de Teatro
APUBH UFMG+: A peça “Banho de Sol” partiu da vivência de artistas/professoras de teatro com mulheres em situação de cárcere. Em tempos de aumento das desigualdades sociais e do preconceito (mulheres, negros, pobres, LGBTQIA+, etc.), o que temos a aprender com essas mulheres?
Talita Braga: Peço licença para responder esta pergunta com um dos textos que fazem parte do início do espetáculo BANHO DE SOL. Este texto diz muito sobre as reflexões geradas a partir do encontro com as nossas alunas em privação de liberdade.
“Eu queria mesmo só contar do nosso encontro com elas. Mas não dá, sabe por quê? É complexo mas…toda vez que eu penso nisso me vem uma vontade de gritar ou então de não falar mais nada durante horas…
É preciso te ferir pra você olhar pra ferida?
É preciso te ferir pra você olhar pra ferida? Ótimo, então a gente pode começar pensando que no Brasil não tem pena de morte, ainda… Todo mundo que tá lá dentro, teoricamente, vai sair um dia. E vai sair como? A gente já parou para pensar nisso?
Imaginem… O sistema ele apaga as pessoas. Desumaniza. Tira a vida. O brilho no olho. Ele não é reflexivo, ele é punitivo. Ele não é pra ressocializar, ele é para punir. É pra matar. Ele é a senzala contemporânea. É pra exterminar. E quem é o sistema?
Quem é o sistema?
O sistema somos nós. Gente , eu sei, é complexo…se tem uma pessoa aqui que perdeu alguém por causa de um crime, por causa de alguma violência, eu respeito a sua dor, a sua revolta, mesmo. Mas não é disso que eu tô falando. Eu tô falando é do todo.. Nós aqui, cidadãs de bem, trabalhadoras, a gente acredita mesmo que uma pessoa pobre é um ser humano pior, mais cruel e é por isso que são estas pessoas, em sua maioria, que estão lá dentro. Branca de classe média, a gente nasce com uma índole melhor. A gente já parou pra pensar, um minutinho, em desigualdade social? Será que a criminalidade tem alguma coisa a ver com isso? A gente já parou pra pensar que em países onde não existe a desigualdade social nem arma a polícia tem. Que em muitos países onde não existe a desigualdade social, muitos presídios eles são fechados por falta de população carcerária. Olha que coisa! Enquanto isso, aqui no nosso país, a população carcerária quase dobrou nos últimos 10 anos e a violência só tem aumentado. Será que encarcerar é o que vai resolver este problema? Mas eu não estou falando não é só disso não, porque eu encontrei lá mulher muito rica. Que já saiu, lógico! Ela era tão rica que talvez ela chegasse a comandar esse estado inteiro, talvez ela chegasse a comandar o nosso país inteiro…..o que eu tô falando é que aquele lugar não serve pra ela nem pra ninguém… é preciso repensar.
O meu ponto de vista ele é passional sim, ele é pra defender essas mulheres sim. Sabe por quê? Porque aqui fora já tem ponto de vista demais pra condenar..ah..Talita,mas se você não trouxer a contradição aí não humaniza..as pessoas não vão se aproximar do seu discurso. FODA-SE! FODA-SE! Porque pra mim bastava eu ter encontrado uma mulher que eu achasse que não devesse estar lá dentro pra eu ser completamente passional. E eu não encontrei não foi uma, nem duas nem três não. Foram várias!!! E aí eu penso, que merda! Podia ser eu, podia ser você! Podia ser sua irmã… mas será? Quando é que uma luta passa a ser uma causa sua? Nós somos quatro mulheres brancas pra falar de um encontro que se deu onde 69% das mulheres encarceradas são negras e isso não foi nem discutido por nós enquanto a gente tava lá dentro..eu tô falando é de tomar consciência. É de entender que esse é um problema nosso sim. O sistema somos nós. É preciso te ferir pra você olhar pra ferida? Quando é que uma luta passa a ser uma causa sua? Quando é que uma luta passa a ser uma causa sua? Eu tô falando é de ser estuprada pelo pai, pelo padrasto, todas as noites durante anos e não ter a quem recorrer, é de ser queimada viva e não ter a quem recorrer, é de ver seu filho te perguntando antes de morrer: “ele não viu que eu tava com uniforme de escola mãe?”, e não ter a quem recorrer, .. é de apanhar do marido viciado em crack e não ter a quem recorrer, é de ouvir vozes e não ter a quem recorrer…. vamos tentar enxergar um pouco a realidade que tá logo aqui do nosso lado…mas a nossa barriga tá cheia demais pra isso..”
“Imaginem… O sistema ele apaga as pessoas. Desumaniza. Tira a vida. O brilho no olho. Ele não é reflexivo, ele é punitivo. Ele não é pra ressocializar, ele é para punir. É pra matar. Ele é a senzala contemporânea. É pra exterminar. E quem é o sistema?” – trecho da peça ‘Banho de Sol’, citado por Talita Braga, da Zula Cia. de Teatro
APUBH UFMG+: E por falar em aprender, a transmissão do espetáculo faz parte da programação de atividades em comemoração ao Dia das Professoras e dos Professores, promovido pelo APUBH UFMG+. Como vocês enxergam essa experiência de ensino e aprendizado?
Kelly Crifer: Ensinar é um processo constante de aprendizado, de troca e escuta. Ensinamos aprendendo, aprendemos ensinando. Uma pergunta foi centro de nosso encontro: Quais são as liberdades possíveis entre nós ali, juntas? O encontro se deu a partir daí num processo constante de troca, entre abraços e escuta. Toda nossa condução surgia do ouvir, observar, trocar. Cada fala e movimento delas é que ditava nosso próximo passo. Conduzimos os jogos teatrais como maneira delas se reaproximarem delas mesmas, das memórias e das capacidades que elas possuíam de criatividade, de fala, de escuta e de integração. Assim, nós também fazíamos esse movimento e a partir das narrativas delas fomos atravessadas por aquelas histórias, como também fomos flagrando o micro e o macro, nossos privilégios, toda a escravização desses corpos dentro e fora do presídio.
Cada encontro era um deixar se envolver pelos afetos, abrir buracos nos corpos e de mãos dadas – eu seguro sua mão na minha para que juntas posamos fazer o que eu não posso fazer sozinha – abraços demorados de todas para todas, respiração, olhares, consciência corporal, danças das articulações, palma nome, coordenação motora, quando eu digo não vocês dizem sim, quando eu digo sim vocês dizem não, shep shep, crie o seu movimento, como você se sente hoje, gestualize – testemunhamos a gestualidade do corpo aprisionado experimentando a liberdade, observar e espelhar a outra, se vê na outra como colega de cena – escrever sobre a aula na cela, reverberar junto – tarefa para a próxima aula – pergunta – resposta – teatro é um movimento que sai do coração. Disso tudo, uma explosão de potências dentro e fora. Nelas e em nós. Somos muito agradecidas pelos momentos que passamos com elas e o quanto aprendemos e nos expandimos – quando é que uma luta se torna uma causa sua? Teatro é troca, reverberação, nunca se sai de um processo como entrou, são transformações profundas tanto em quem recebe como para quem conduz. Muitas vezes a aula era roda e conversa, outras abraço, coxinha e refrigerante; e isso era o teatro ali, o que aquela, ou aquelas mulheres precisavam. A urgência naquele espaço com condições restritas de alimentação, condição sanitária, tratamento, etc, traz outros gritos, um teatro de guerrilha onde a gente buscava validar com dignidade mínima a existência daquelas mulheres ali. Toda essa metodologia e procedimentos foi sendo operada nessa relação de cumplicidade entre nós e elas, o que acamava todo o processo. Ensino e aprendizagem é uma linha só, e muitas vezes aparecem muitos nós, e nessa costura se confunde quem de fato ensina e onde está quem aprende – é tudo junto e misturado.
“Ensino e aprendizagem é uma linha só, e muitas vezes aparecem muitos nós, e nessa costura se confunde quem de fato ensina e onde está quem aprende – é tudo junto e misturado” – Kelly Crifer, da Zula Cia. de Teatro
APUBH UFMG+: A realização da peça ocorre com apoio do APUBHUFMG+. Qual a opinião do grupo sobre essa parceria?
Mariana Maioline: É motivo de orgulho e alegria ter recebido o convite do APUBHUFMG+ para apresentação do espetáculo Banho de Sol. O sindicato é uma referência na luta pela educação de qualidade e defesa da educação pública. Num momento tão delicado em que a arte e a educação são alvos do retrocesso, essa parceria que fomenta a arte, fortalece os laços, é ato de resistência e demonstra que precisamos estar em coletividade para buscar formas de sairmos da barbárie.
“É motivo de orgulho e alegria ter recebido o convite do APUBHUFMG+ para apresentação do espetáculo ‘Banho de Sol’. O sindicato é uma referência na luta pela educação de qualidade e defesa da educação pública” – Mariana Maioline, da Zula Cia. de Teatro