Ataques à carreira EBTT pelo Ministério da Educação
Na última quinta-feira, 26 de novembro, o APUBH convocou, em caráter de urgência, a Diretoria Geral, o Conselho Fiscal e o Conselho de Representantes para se reunir com os professores do Ensino, Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) da UFMG a fim de discutir a portaria nº 983 do MEC. Foram convidados para a reunião os e as docentes do Colégio Técnico, Centro Pedagógico, Teatro Universitário e dois docentes do Instituto de Ciências Agrárias que fazem parte da carreira do EBTT.
Editada em 18 de novembro de 2020, a referida portaria objetiva regulamentar as atividades docentes no âmbito da rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica com impactos no trabalho das(os) professoras(es) EBTT’s. A portaria, dentre outras determinações, promove:
- o aumento do mínimo de 10 para 14 horas-aulas semanais para os docentes em regime de tempo integral, e de 8 para 10 horas -aulas semanais para os docentes em regime parcial;
- institui a contagem do tempo relacionado às atividades docentes em hora-relógio (60 minutos) não mais hora-aula;
- institui o controle de ponto eletrônico para os docentes da carreira EBTT que atuam na rede federal;
- normaliza o trabalho remoto para os docentes no âmbito da rede federal.
Preocupada com as mudanças que afetam os docentes e com a possibilidade de ilegalidade nesta Portaria, a Diretoria consultou a Assessoria Jurídica, que elaborou pareceres sobre o tema.
De início, é importante entender qual o âmbito de aplicação da Portaria nº 983/2020 na Universidade Federal de Minas Gerais. O art. 1º da Portaria estabelece que serão atingidos os professores da Carreira de Magistério do EBTT que estiverem lotados na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, na forma da Lei Federal nº 11.892/2008.
Como a lei estabelece que só fazem parte da referida Rede as escolas técnicas vinculadas às Universidades Federais, as disposições da Portaria nº 983/2020 não se estendem nem para os professores em cursos de graduação e pós graduação, nem para os professores de Colégios de Aplicação, ainda que sejam professores de EBTT. No âmbito da UFMG, portanto, a Portaria apenas se aplica aos professores do COLTEC, sem impacto para quaisquer outros departamentos e, em especial, sem impacto para os docentes do Centro Pedagógico.
Isso não significa dizer que as violações constantes da Portaria nº 983/2020 não são relevantes para toda a comunidade acadêmica. Todos os ataques à autonomia universitária são preocupantes num cenário de desmonte da Universidade Pública.
A primeira ilegalidade da Portaria nº 983/2020 vem do seu nascedouro. Editada com o objetivo de estabelecer “diretrizes complementares à Portaria nº 554, de 20 de junho de 2013, para a regulamentação das atividades docentes, no âmbito da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica”, aponta, como sua fundamentação jurídica, o art. 14, § 4º da Lei Federal nº 12.772/2013, que permite ao Ministério da Educação estabelecer diretrizes gerais para o processo de avaliação de desempenho para fins de progressão e promoção dos docentes dos Instituições Federais de Ensino.
Contudo, de maneira surpreendente, a Portaria nº 983/2020 estabelece diretrizes para a regulamentação das atividades docentes, algo que jamais foi permitido por lei e carece de qualquer fundamentação normativa para sustentar a sua validade.
De acordo com o princípio da legalidade, disposto no art. 37 da Constituição de 1988, enquanto os cidadãos gozam de liberdade para agir da forma como lhe convirem, desde que suas ações não sejam ilegais, a administração pública somente pode fazer aquilo que a lei lhe permite. Sem permissão expressa da legislação, não há espaço para discricionariedade ou inventividade por parte do administrador.
Nesse sentido, como o MEC é órgão da administração pública, não há justificativa para o salto abismal entre a possiblidade legislativamente prevista de estabelecer diretrizes gerais das avaliações de desempenho e o realizado na Portaria nº 983/2020, que é verdadeira regulamentação da vida funcional dos docentes de EBTT.
A Portaria nº 983/2020 também viola o mandamento constitucional da autonomia universitária (art. 207, CRFB/88). Isso porque a única restrição possível à autonomia universitária vem de expressa determinação legal e, ainda, desde que a legislação em si não coíba a independência das instituições de ensino.
Nesse sentido, se a legislação é silente sobre as divisões de tempo e horas gastas em sala de aula, é justamente porque cabe às universidades, no âmbito da autonomia didático-científica e administrativa, designar como os docentes deverão ocupar as 40 horas semanais (dedicação exclusiva) e 20 horas semanais (dedicação parcial) dentro de suas instituições.
Por outro lado, e novamente em flagrante violação do art. 207, impõe-se que a exigência de no mínimo quatorze horas (dez para professores com dedicação parcial) para ministrar aulas também viola o tripé ensino-pesquisa-extensão. Isso porque, por óbvio, quatorze horas de aula implica num gasto ainda maior de tempo de trabalho com preparação de aula, correção de provas e organização do material didático, prejudicando o tempo disponível para engajar em atividades de pesquisa e extensão.
Aliás, cumpre ressaltar que a produção acadêmica e de extensão são requisitos para uma avaliação de desempenho positiva e, nesse sentido, são requisitos necessários para progressão na carreira. Se o tempo do docente está comprometido com a sala de aula em quase sua totalidade, há de se convir que os professores de EBTT estão sendo diretamente prejudicados em sua vida funcional.
Ademais, a normativa, além de violar o princípio da isonomia entre as Carreiras de Magistério Superior e EBTT, promove discriminação entre os professores da mesma carreira EBTT. Nesse sentido, os docentes do COLTEC serão forçados a ter uma carga horária divergente de seus pares, sendo, porém, submetidos aos mesmos critérios de avaliação institucional, o que cria uma situação de desigualdade insustentável perante a ordem constitucional vigente.
Se a UFMG determina que todos os professores, independentemente da carreira, deverão ter uma carga horária semanal de oito a doze horas semanais, a Portaria determina que apenas uma parcela desses, vinculados à carreira de EBTT e lotados no COLTEC, deverão ter parâmetros de carga horária diferentes do resto da Universidade – aliás, cumpre ressaltar que a carga horária mínima estabelecida pela Portaria nº 983/2020 é superior à carga horária máxima definida pela própria UFMG na Resolução nº 02/2014.
A referida Portaria também estabelece que os professores atingidos deverão comprovar frequência por meio de registro eletrônico, outra violação a legislação aplicável. A Lei Federal nº 12.227/2012 efetivamente equiparou a carreira de Magistério Superior e a carreira de Magistério da Educação Básica, Técnica e Tecnológica, unificando-as em um único Plano de Carreiras do Magistério Federal, sem nenhuma distinção entre ambas.
Se os professores do ensino superior estão isentos do controle eletrônico de frequência, nos termos do Decreto nº 1590/95, os professores de EBTT também o estão. Assim, os professores de EBTT fazem jus à dispensa do controle de frequência, sendo manifestadamente ilícita a disposição da Portaria nº 983/2020.
Nesse sentido já se manifestou a própria Advocacia Geral da União por meio do Parecer nº 420/2013/PFUFMG/PGF/AGU/SBN, no sentido de ser ilegal quaisquer atos que visem a imposição de controle de jornada laboral para os integrantes da carreira do Magistério do Ensino Básico Técnico – EBTT.
Outro ponto digno de nota é que a Portaria também prevê que o tempo destinado às atividades dos docentes seria contado em horas-relógio (sessenta minutos), não mais horas-aula. Esse entendimento se encontra contrário às disposições do Parecer CNE/CES nº 261/2006, que estabelece que a prerrogativa de definir os minutos em que se consiste uma hora-aula é das próprias instituições de ensino – mais uma violação à autonomia universitária – e, ainda, do art. 75 da Lei Federal nº 8.112/1990, onde se definiu que o horário do trabalho noturno será computado em intervalos de cinquenta e dois minutos e trinta segundos.
Isso significa que não somente a Portaria aumenta número absoluto de horas a serem cumpridas pelos docentes de EBTT, mas também a forma de contagem que essas horas deverão ser submetidas, comprometendo ainda mais o tempo restante dos docentes para atividades inerentes à atividade docente em Universidades Federais, como preparação de aulas, orientações de pesquisa e coordenação de extensões, por exemplo.
Ainda, no que se refere ao trabalho remoto, apesar de a Portaria não regulamentar, de forma específica, essa questão, verifica-se a pretensão de normalização dessa forma de trabalho na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, apesar da notória ausência de previsão legal, em sentido estrito, autorizando a alteração da forma de execução do trabalho dos docentes.
Tais iniciativas têm sido incorporadas pelo Governo Federal, tal como a Instrução Normativa nº 65/2020, que regulamenta a possibilidade dos órgãos e entidades firmarem Programa de Gestão com a Administração Federal para disciplinar o exercício de atividades em que os resultados possam ser mensurados, com controle de metas, de produtividade. Nessa perigosa IN, que já foi objeto de discussão em outra reunião de Conselho de Representantes do APUBH, há evidente inversão da lógica do trabalho na Administração Pública, na medida em que os órgãos e entidades que aderirem ao programa de gestão passam a ter como regra o trabalho remoto.
Assim, fica claro que a Portaria nº 983/2020 foi editada na mesma lógica de gestão produtivista que tem sido implementada pelo Governo Federal, e sem comprometimento com a saúde e dignidade no ambiente de trabalho, impondo graves violações de direitos da categoria docente quanto à regulamentação da jornada e forma de trabalho, extrapolando o seu poder regulamentar, violando princípios constitucionais basilares do ordenamento brasileiro.
Por todo o exposto, percebe-se que a Portaria nº 983/2020 é manifestadamente ilegal e inconstitucional, violando flagrantemente o art. 14, §4º da Lei Federal nº 12.772/2012 extrapolando o poder regulamentar que lhe foi concedido. Por outro lado, viola diretamente o art. 37, caput e 207 da CRFB/88, por ir de encontro aos princípios da legalidade, reserva legal e autonomia universitária, bem como a indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão.
Há também violação expressa do art. 2º da Lei Federal nº 12.772/2012, quando equipara as carreiras de Professor do Magistério Superior e Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico, ao exigir o controle de frequência explicitamente dispensado pelo art. 6º do Decreto nº 1590/1995.
A Portaria, ademais, determina que as Instituições de Ensino se adequem às suas determinações. Por esta razão, o APUBH está oficiando a UFMG para entender qual será o posicionamento da Universidade sobre a aplicação da normativa, considerando a sua flagrante inconstitucionalidade e o ataque a autonomia universitária constitucionalmente garantida.
Como ulterior encaminhamento da reunião, o APUBH articulará com outras entidades a fim de se somar à luta pela defesa dos direitos dos professores afetados pela citada Portaria e envolverá nas discussões a categoria como um todo, posto que o ato normativo se insere num contexto mais amplo de ataques à educação que exige unidade na luta diante da conjuntura de ofensiva neoliberal aos direitos dos professores e desmonte da educação publica.
Já está em tramitação o Projeto de Decreto Legislativo nº 484/2020, apresentado pelo Deputado Federal Leo de Brito, com o objetivo de sustar os efeitos da Portaria nº 983/2020. O projeto, apresentado no dia 20 de novembro de 2020, ainda aguarda tramitação no Congresso Nacional.
Por fim, e tendo em vista o cenário de flagrante ilicitude da Portaria, caso a UFMG aplique as ilegalidades prevista no ato normativo do MEC, o APUBH adotará as medidas judiciais cabíveis para suspender os efeitos da Portaria nº 983/2020, a fim de garantir os direitos dos sindicalizados lotados no COLTEC.
Atenciosamente,
DIRETORIA APUBH