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Liberdade de ensinar, Liberdade de aprender: esclarecendo a ação do MP contra o Colégio Santo Agostinho

 

Na semana passada, foi noticiado o ajuizamento de ação civil pública contra uma tradicional escola da rede particular de ensino de Belo Horizonte. Diante de mais um ataque à liberdade de ensino, à liberdade de aprender ou, simplesmente, liberdade de cátedra, necessário reforçar a importância de debater o tema não apenas no ambiente educacional, mas com a sociedade civil e com as diversas instituições do país.

 

É certo que em um Estado Democrático de Direito, a liberdade e a pluralidade de ideias são valores fundamentais, que encontram proteção em normas nacionais e internacionais norteadoras do processo de aperfeiçoamento democrático. Contudo, o cumprimento destas normas deve ser exigido diuturnamente por aquelas e aqueles que creem na democracia como forma de governo na qual o exercício da liberdade pode se concretizar, sob pena de se abrir caminho para a supressão de direitos que foram conquistados a duras penas, com muita luta social.

 

As discussões em torno dos limites à liberdade de cátedra têm tomado centralidade no país nos últimos tempos. Projetos de lei têm sido votados no sentido de limitar, em alguma medida, os conteúdos a serem ensinados em sala de aula; autoridades públicas têm instigado alunas(os) a denunciarem professoras(es) por ministrarem conteúdo com “doutrinação comunista”; buscas e apreensões e interrupções de aulas e eventos foram realizados em universidades de todo o país, sob a alegação de que estaria havendo nesses ambientes propaganda partidária; por fim, no caso específico do Colégio denunciado, a alegação é de que professoras(es) estariam propagando para crianças conteúdos típicos da “ideologia de gênero”.

 

Felizmente, o movimento institucional não é uníssono. No Poder Judiciário, duas importantes decisões foram tomadas no sentido de garantir o direito à liberdade de cátedra de professoras(es), nas ações ADI nº 5537 e ADPF nº 548.

 

Quanto ao Ministério Público, ainda que a ação contra o Colégio Santo Agostinho tenha sido ajuizada por membros do órgão, as manifestações institucionais têm sido no sentido de aderir à liberdade de cátedra nos moldes garantidos pela Constituição e demais normas, nacionais e internacionais. Desse modo, em Minas Gerais, MPMG e MPF, por exemplo, expediram recomendação conjunta às Secretarias Municipal e Estadual de Educação para que seja garantido o cumprimento da liberdade de ensino e aprendizado nas escolas e universidades mineiras. Em Santa Catarina, o Ministério Público ajuizou ação contra a deputada que instigou a denúncia a professoras e professores por parte do corpo discente. Por sua vez, no dia 28 de novembro, o Ministério Público de Minas Gerais reiterou no site da instituição seu “compromisso pela garantia das normas e princípios que regem a educação nacional”, nos mesmos termos da Nota Técnica nº 30/2018, expedida pelo Conselho Nacional de Procuradores-Gerais.

 

É curioso que na semana em que se celebrava o Dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher (25 de novembro) venha à tona mais um ataque ao ensino e aprendizado nas escolas com o viés da questão de gênero e sexualidade.

 

O Colégio investigado na ação em virtude de, segundo a denúncia, estar propagando conteúdo ligado a ideologia de gênero, manifestou-se no sentido de que as mudanças por que passou a sociedade refletem naquilo que se passa dentro da escola.

 

E não poderia ser diferente. Ao lado das inúmeras disposições constitucionais e internacionais sobre liberdade de ensinar e aprender, a Lei Federal nº 9.394/1996 ressalta em seu artigo primeiro que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.

 

Nesse sentido, é inadmissível tentar desconectar a escola da sociedade que a rodeia.

 

A comunidade em que se insere esta e todas as demais instituições de ensino do país despertou-se para a existência de violência e disparidades de gênero, coisas inaceitáveis em um contexto no qual se pretende aprimorar a democracia.

 

É claro que a conscientização quanto ao processo de construção social marcado pela invisibilidade, diminuição e desvalorização da mulher, é um processo histórico que ocorre há anos, que pode ser verificado nas diversas ondas de feminismo, amplamente discutidas na atualidade. Ainda que muito ainda deva ser melhorado em termos de igualdade de gênero, são os resultados parciais desta luta que acabam por provocar reações contrárias, praticamente no sentido de uma tentativa de retorno ao estado anterior das coisas (status quo ante).

 

Nas últimas décadas, órgãos internacionais e nacionais começaram a fazer levantamentos sobre os números da violência doméstica; foram promulgadas leis que estabelecem penas mais duras para crimes cometidos em razão de a vítima ser mulher; políticas públicas têm se desenvolvido no sentido de incluir mulheres no cenário político; diversas delegacias especializadas em mulheres foram abertas; e, principalmente, tomou-se consciência de que não é correto dizer que em “briga de marido e mulher ninguém deve meter a colher”. Pelo contrário. Os números indicam que, dentre as mulheres assassinadas no mundo, em 2017, a maioria foi morta por parceiros ou parentes.

 

Como deixar de problematizar isso? A escola pode/deve se furtar de uma educação que estabeleça o respeito às mulheres como um valor básico a ser seguido?

 

A construção cultural que, em última instância, resulta no homicídio de mulheres em razão do gênero se deu, até então, no sentido de naturalizar muitas condutas e comportamentos cotidianos que se caracterizam como verdadeiras violências. Meninas, mulheres, meninos e homens passam a problematizar isso na atualidade e a sociedade passa a ser o palco de todo um embate de ideias em torno disso.

 

As instituições de ensino teriam tomado as vezes da família? Isso porque no seio familiar, em grande parte dos lares, tratar dessas questões é inadmissível, beira uma proibição. No entanto, os questionamentos são levados para a casa, e aí começam os embates. A partir desse momento, começa a ser contestado o papel que a escola tem desempenhado.

 

Eis a grande questão que se coloca como pano de fundo dessa tentativa de limitar o papel que a educação exerce na formação de estudantes em termos de cidadania, de respeito a preceitos fundamentais, aos direitos humanos. Não abrir possibilidade para discutir questões afetas a gênero e sexualidade é coadunar com as diversas formas de violência que se dão no cotidiano. Isso implica dar as costas para os embates que se dão na sociedade para o reconhecimento e efetivação de direitos para aquelas e aqueles que antes estavam de alguma forma marginalizados.

 

É grave o que se intenta por meio do rótulo “Escola sem partido”, com a pretensão de limitar a difusão de conteúdo crítico nas escolas e universidades.

 

Dentre as razões apresentadas na ação ajuizada contra o Colégio Santo Agostinho, consta a ideia de que está em curso um grande movimento, encabeçado por organismos internacionais representantes da “ideologia de gênero”, que põe em risco a existência da instituição familiar.

 

Nos termos da ação, “alguns segmentos da ONU, o mais insuspeito dos organismos internacionais, vêm sofrendo com a ingerência de organizações não-governamentais – ONGs, que os estão usando como meio de propagação de uma doutrina exótica e fundamentalista”. Na petição defende-se que, no âmbito das Conferências Internacionais, surgiu o que se chama de “Teoria de Gênero”, ideologia que seria patrocinada por grandes corporações internacionais para enfraquecer a tradicional instituição familiar. Segundo os promotores,

 

Isto se deu na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim, no ano de 1995, cujo documento resultante introduziu o termo e a perspectiva de gênero, a serem observados de forma transversal em todas as políticas públicas nos países-membros da ONU.

Causam mesmo perplexidade os argumentos apresentados. Pretende-se, em poucas linhas, reescrever a história e toda construção teórica que embasou o avanço da discussão sobre gênero e sexualidade no mundo.

 

Ademais, ao atacar organismos internacionais, a exemplo da ONU, que defendem a construção de uma sociedade democrática, impulsiona-se um chamamento ao isolamento do país em termos de defesa e garantia dos direitos humanos.

 

Tal tentativa é nefasta para a sociedade brasileira, não apenas na perspectiva interna, uma vez que o pensamento crítico possibilita a insurreição contra as mais diversas opressões, dentre as quais a elevada e crescente concentração de riquezas no mundo, mesmo (e principalmente na verdade) em um contexto de crise econômica.

 

Em junho, por exemplo, realizou-se, em Córdoba, a III Conferência Regional de Educação Superior da América Latina e do Caribe 2018 (CRES 2018), que, conforme afirmado pela UNESCO, corresponde ao

 

evento mais importante do Sistema de Educação Superior da América Latina e do Caribe. Reitores e reitoras, diretores e diretoras, acadêmicos, docentes, estudantes e representantes de diversas organizações governamentais e não governamentais se reúnem para analisar e debater a situação do sistema educacional na região e traçar um Plano de Ação para a próxima década, destinado à necessidade de reafirmar o sentido da educação como bem social, direito humano e responsabilidade do Estado1.

 

O ano de 2018 é um marco em muitos sentidos para a luta pela efetivação e consolidação dos direitos humanos. Primeiramente, comemoram-se os 100 anos da Carta de Córdoba: em junho de 1918, estudantes da Argentina aprovaram o manifesto “La juventude argentina de Córdoba a los hombres libres de Sudamérica”.

 

Da mesma forma, comemoram-se os 30 anos da Constituição brasileira, conhecida como “Constituição cidadã”, na qual a liberdade de expressão é colocada como direito fundamental. Além disso, princípios como a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (art. 206) são colocados em todo um capítulo que trata da educação no país.

 

Por fim, comemoram-se os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual dispõe que “A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais” (art. 26).

 

É louvável que as instituições de ensino, estudantes, professoras e professores não façam vista grossa às opressões que se passam na sociedade e se organizem nacional e internacionalmente para fazer frente a um movimento que visa a retirar das pessoas as possibilidades de acesso ao pensamento crítico, que possibilite contestar as iniquidades presentes na sociedade e lutar pelo não retrocesso das garantias e direitos conquistados.

 

Na próxima semana, no dia 10 de dezembro, comemora-se também o Dia Internacional dos Direitos Humanos, simbolizando a luta pela efetivação desses direitos, com uma ampla agenda de eventos e manifestações por todo o mundo.

 

E o APUBH, sindicato representante daquelas e daqueles que, por meio do exercício da docência, contribuem para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, estará vigilante e na luta pela efetivação do direito da liberdade de aprender e ensinar, ao livre pensar, para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática

 

1 UNESCO. CRES 2018 – III Conferência Regional de Educação Superior. 11 a 15 de junho. Córdoba – Argentina.

 

 

Sarah Campos (assessoria jurídica do APUBH) e Bárbara Duarte, advogada.