Acontece no APUBH

O Assédio Moral e a Precarização no Contexto do Trabalho Docente nas Instituições Públicas de Ensino Superior

Confira o artigo de Julie Micheline Amaral Silva  e  Carlos Eduardo Carrusca Vieira do NADi APUBH

O APUBH, por meio do Núcleo de Acolhimento e Diálogo -NADi, inaugurou o debate sobre assédio moral no contexto laboral. No dia 09 de julho foi realizada uma Roda de Conversa sobre a temática e no dia 23 foi realizada uma Live, ambas contando com a participação da psicóloga Julie Amaral, do NADi e do professor Dr. Carlos Eduardo Carrusca Vieira, coordenador do Núcleo de Apoio Psicológico aos Vigilantes e Trabalhadores Vítimas de Violência no Trabalho e autor dos livros “Assédio – do moral ao psicossocial – desvendando os enigmas da organização do trabalho” e “Traumas no Trabalho: uma nova leitura do Transtorno de Estresse Pós-Traumático” (editora Juruá).

O assédio moral no trabalho, em sua perspectiva mais tradicional, baseada nos estudos da psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen, tem sido concebido como “toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se, sobretudo, por comportamentos, palavras, gestos, escritos, que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho” (Hirigoyen, 2011, p. 65). Nessa perspectiva, buscando a origem do assédio moral, a autora francesa entende que os atos sucessivos de violência no contexto laboral resultam das características de personalidade do assediador, este último classificado como um “perverso narcisista”, ao passo que o assediado seria uma pessoa emocionalmente frágil.

O que vemos, no entanto? Se de um lado a conceituação do assédio moral pode contribuir para dar visibilidade a certas violências no contexto laboral, por outro, a compreensão desse fenômeno como resultado apenas de conflitos interpessoais, entre indivíduos com diferentes características de personalidade, leva-nos a um reducionismo perigoso e a armadilhas no enfrentamento do problema, porque subtrai do assédio moral elementos que o constituem.

Numa metáfora, os conflitos interpessoais que têm lugar no contexto laboral constituem-se como a ponta de um iceberg. São a parte mais visível do fenômeno, mas não respondem por sua integralidade. Existem, é claro, pessoas com características perversas em altos níveis hierárquicos, praticando violência contra seus subordinados. Considerar, porém, apenas as características individuais como causas únicas desse fenômeno, seria como tomar a ponta do iceberg como o iceberg inteiro, ignorando os fatores relacionados ao trabalho – abaixo da superfície –, e que produzem uma erosão das relações sociais, propiciando e, até mesmo, incentivando práticas de violência no contexto laboral.

Além dos fatores subjetivos e intersubjetivos, importa considerar para a compreensão do assédio moral as situações reais de trabalho, a atividade laboral, as condições de gestão e organização do trabalho, a cultura organizacional, as políticas de recursos humanos e os elementos socioculturais que se objetivam nas relações laborais. O assédio moral, sob esse ângulo, passa a ser compreendido como resultado de uma lógica que domina e governa as relações de trabalho, apesar das “fortes cores pessoais” (Vieira, Lima & Lima, 2012). O assédio moral dirigido contra um indivíduo e contra o seu trabalho seria, portanto, a expressão de um “trabalho maltratado”, de uma atividade que deixa, progressivamente, de ser fonte de saúde, valor pessoal e autorreconhecimento e converte-se em fonte de mal-estar e adoecimento. Do mesmo modo, o assédio organizacional, que se dirige contra um conjunto de trabalhadores e que se fundamenta no uso de estratégias agressivas de gestão como forma de maximizar a produtividade, guarda, em sua origem, dimensões organizacionais, político-econômicas e socioculturais.

É preciso considerar que o trabalho é a forma primordial de interação entre o ser humano e o mundo material e social. Por meio do trabalho, garantimos nossa existência, transformamos nosso meio e nos transformamos. No modo de produção capitalista, o trabalhador vende sua força de trabalho a quem quer (e pode) comprá-la. O trabalho é convertido em mercadoria, em força de trabalho. Para garantir sua subsistência, o trabalhador submete-se às condições impostas pelo comprador de sua força de trabalho. Ao capital, entretanto, interessa a exploração da energia vital, não importando os limites individuais, já que seu objetivo é valorizar-se. A vigilância contumaz e sofisticada do trabalho, a gestão baseada no controle extremo, o uso de avaliações centradas no desempenho individual pressiona fortemente os trabalhadores e intensificam o ritmo da atividade de trabalho.

Nesse cenário de conflito entre o capital e trabalho, os trabalhadores, com frequência cooptados pela lógica neoliberal, são chamados a competição, a vigilância uns dos outros, a ultrapassarem seus limites. A solidariedade é sufocada pelas exigências ilimitadas. Essa erosão nas relações de trabalho leva cada um(a) a se enxergar como único(a) responsável pelo seu “desempenho”, sem que o processo de trabalho seja interpelado. As metas, exigências e cobranças em cadeias hierárquicas, orientadas para a alta performance, forjam ambientes tóxicos, que desprezam os limites individuais e tornam as relações humanas no trabalho fonte de mal-estar e adoecimento.

No setor público, ora examinado, nota-se um alinhamento ideológico com o discurso e com as práticas neoliberais, com forte incentivo à concorrência e à competição. No contexto de pandemia de COVID-19, com a adoção do Ensino Remoto Emergencial (ERE), houve um aprofundamento da precarização do trabalho docente no magistério no ensino superior público: docentes não receberam treinamentos para uso das plataformas digitais e tiveram de fazer uso de seus próprios recursos para a aquisição de equipamentos necessários. Junto disso, a falta de interatividade nas aulas síncronas, a ampliação expressiva das demandas de trabalho – que já eram muitas –, e o transbordamento das exigências do trabalho para o ambiente doméstico, desafiam a qualidade do ensino e expõem docentes a situações de mal-estar e adoecimento, como verificamos em escuta realizada em Roda de Conversa realizada pelo Núcleo de Acolhimento e Diálogo – NADi.

Nessa oportunidade, docentes manifestaram se sentirem impotentes diante do volume desproporcional de trabalho. Os docentes ouvidos compartilharam vivências e sentimentos de mal-estar: sensação de que não é possível atender a todas as demandas, mesmo que se dediquem ao trabalho “vinte quatro horas por dia, sete dias por semana”, sentimento de esgotamento cognitivo, físico e psicológico, assim como sentimento de culpa por não conseguir realizar o que deveria. Há, além disso, uma dificuldade de negar o atendimento a demandas que extrapolam os limites individuais e prejuízos para o convívio familiar.

Diante de tudo isso, muitos tentam saídas individuais, de forma a mitigar o sofrimento. Essas saídas, entretanto, com frequência, sequer contam com o respaldo coletivo, e colocam o acento na responsabilidade individual, como se o cuidado com a saúde dependesse simplesmente da “vontade pessoal”, da melhor “organização das agendas” e da implantação de “hábitos eficazes” e não de condições concretas de vida e trabalho.

Em outra perspectiva, identificando que o trabalho padece nestes tempos, reforçamos ser preciso cuidar do “trabalho em todos os seus sentidos”, como dizia o psiquiatra francês Louis Le Guillant (2006). Para isso, necessitamos primeiro reconhecer, em espaços de debate coletivo, as fontes do mal-estar ora instalado no contexto laboral, para, na sequência, e, mais uma vez, de forma coletiva, instaurar debates que coloquem as experiências vividas, os valores docentes – assim como o valor da saúde – no centro das reflexões e das transformações necessárias da organização do trabalho.

Sabemos que a construção desses espaços de debate coletivo é um desafio. Os docentes relatam de forma contumaz a escassez do tempo. Entretanto, entendemos ser o debate o melhor caminho. O problema, como já dissemos, reside nas condições de trabalho, é vivido e reproduzido coletivamente. Precisa, por isso, ser solucionado nessas instâncias da realidade laboral. Os professores querem proteger o sentido de seu ofício e a qualidade de sua atividade de trabalho, fonte de saúde, desenvolvimento e valor pessoal. Querem poder se reconhecer no que fazem. Querem o trabalho bem cuidado, com sentido e significado. Querem se sentir capazes de agir no mundo e realizar o melhor. Tudo isso, entretanto, tem sido atropelado por exigências intermitentes e demandas incessantes que ainda carecem de debate no âmbito de cada departamento.

O NADi/APUBH ressalta que esse debate não se esgota por aqui, mas é preciso continuar construindo espaços para tratar e debater o assédio moral e a precariedade no trabalho.

 

Referências

Le Guillant, L. (2006). Escritos de Louis Le Guillant: da ergoterapia à psicopatologia do trabalho. In: MEA, L (Org.). Trad. Guilherme Teixeira. São Paulo: Ed. Vozes.

Hirigoyen, MF (2011). Assédio moral: a violência perversa do cotidiano. São Paulo: Bertrand do Brasil.

Vieira, CEC, Lima, MEA & Lima, FPA (2012). E se o assédio moral não fosse moral? Perspectivas de análise de conflitos interpessoais em situações de trabalho. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 37: 256-268.