ENTREVISTA | Nilma Lino Gomes: “Vivemos um momento de democracia em risco e de ataques às Ciências e aos movimentos sociais”
A professora emérita da UFMG conversou com o APUBHUFMG+ sobre produção de conhecimento, diversidade e políticas de Estado, no cenário sociopolítico atual. No Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência, a docente recebe o 3º Prêmio “Carolina Bori Ciência & Mulher” na área de Humanidades, da SBPC.
“Desde a educação básica até o ensino superior as estruturas das Ciências se mostram mais abertas aos homens e aos meninos. E às pessoas brancas. Mulheres, negros e indígenas não ocupam lugares hegemônicos nas Ciências”, analisou a professora emérita da UFMG, Nilma Lino Gomes, em conversa com o APUBHUFMG+. A professora titular da Faculdade de Educação (FaE/UFMG) é a vencedora do 3º Prêmio “Carolina Bori Ciência & Mulher” na área de Humanidades. O prêmio, que é uma iniciativa da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), será concedido à professora nesta sexta-feira (11/02), data em que é celebrado o Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência.
Referência nacional, na pesquisa científica e na luta antirracista, Nilma Lino foi ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, no governo da presidenta Dilma Rousseff. Além disso, a professora ocupou o cargo de reitora pró-tempore da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) e integrou a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. Atualmente, ela coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Étnico-raciais e Ações Afirmativas (NERA/UFMG).
Nesta entrevista concedida ao APUBHUFMG+, a professora Nilma apontou como as desigualdades de gênero e sexualidade, assim como as desigualdades socioeconômicas e raciais afetam o acesso às Ciências e à Educação em seus diferentes níveis. A conversa também abordou temas como a política de desmonte do Estado, as ameaças à Democracia e as tentativas de manipulação da verdade, que orientam o governo Bolsonaro.
APUBHUFMG+ – Na sua avaliação, quais fatores interferem no ingresso e permanência de mulheres e meninas nas Ciências?
Nilma Lino Gomes – Vivemos em uma sociedade muito desigual e patriarcal. Há um processo inacabado de ruptura com o colonialismo nas mais diversas instâncias da nossa sociedade. Mesmo depois de séculos de avanço das Ciências, as lógicas, o imaginário e as estruturas colonialmente desiguais ainda imperam em nosso país. Tudo isso se acirra com a cruel desigualdade econômica e as hierarquias sociais em que vivemos. Essa situação se dá em todos os campos, inclusive nas Ciências. De múltiplas formas, o campo das Ciências tem gerado hierarquias entre áreas do conhecimento e disciplinas, com diferenças de investimento público, cortes orçamentários, políticas educacionais e de ciências e tecnologia. Tudo isso afeta os sujeitos que constituem as instituições.
A desigualdade de gênero nas Ciências é produzida nesse processo histórico, social, político, econômico e educacional marcado por preconceitos, discriminações, racismo, machismo e hierarquias socialmente construídos. Por mais que tenhamos avançado em decorrência da luta feminista, do feminismo negro e de algumas políticas públicas, as mulheres e meninas nas Ciências sofrem o impacto desses e de outros fatores perversos.
Desde a educação básica até o ensino superior as estruturas das Ciências se mostram mais abertas aos homens e aos meninos. E às pessoas brancas. Mulheres, negros e indígenas não ocupam lugares hegemônicos nas Ciências. Há, inclusive, áreas específicas do conhecimento em que a desigualdade e, até mesmo, a exclusão das mulheres, negros e indígenas se mostra mais nítida.
APUBHUFMG+ – Na sua experiência, o que é ser mulher pesquisadora em uma instituição, como a Universidade, que, historicamente, foi estruturada e funciona com uma concepção masculina no trato laboral da produção científica?
Nilma Lino Gomes – Significa a força das mulheres e das mulheres negras que nunca aceitamos o lugar de subjugação que o universo masculino e as elites econômicas e científicas tentam nos impor.
A presença da mulher na Universidade desvela as desigualdades de gênero no trato laboral da produção científica. Desnaturaliza essas desigualdades que, de tão profundas, passaram a ser vistas como algo natural, próprio da Universidade e das Ciências.
Significa, também, que a Universidade de hoje está em processo de mudança pela força das lutas sociais por ampliação dos direitos e por maior democratização interna e externa das Ciências. É uma mudança na própria concepção de Ciências.
A Universidade tem sido indagada pela diversidade e precisa dar respostas fortes para superar a reprodução das desigualdades sociais, raciais e de gênero existentes na sociedade e que também estão arraigadas na sua estrutura, nas áreas de conhecimento, nos currículos das disciplinas, nos cargos de gestão e decisão, na organização das diferentes áreas do conhecimento e na produção científica.
APUBHUFMG+ – Notadamente, o Brasil enfrenta dificuldades para incluir camadas marginalizadas nas Ciências, assim como na Educação em seus diferentes níveis. Esse é o caso de mulheres, negros, pobres, LGBTQIA+, etc. Qual a sua opinião sobre essa realidade? O desenvolvimento científico pode contribuir para superarmos os preconceitos e desigualdades sociais?
Nilma Lino Gomes – As Ciências sempre foram indagadas pela diversidade. Contudo, nos últimos anos, os sujeitos diversos transformados em desiguais no contexto das nossas históricas relações de poder, alcançaram um outro patamar nas lutas por direito à diferença e por reconhecimento.
Com muitas tensões e desafios, as questões trazidas pelas lutas sociais protagonizadas por esses sujeitos, passaram a ocupar as preocupações de parte do Estado brasileiro, principalmente entre os anos de 2003 ao início de 2016. As políticas de ações afirmativas que vivemos nesse período e a efervescência dos movimentos sociais, em especial, mulheres, negros, quilombolas, indígenas, LGBTQIA+, povos do campo, construíram mais possibilidades de democratização do acesso e de permanência em um importante espaço de produção, socialização e divulgação das Ciências: a Universidade.
Tudo isso tem gerado impactos no desenvolvimento econômico e científico. Com avanços e limites, temos, hoje, a possibilidade de produzir um conhecimento científico que dialogue e, aos poucos, se volte para a sociedade real, diversa e desigual que temos. Aos poucos, temos indagado e impactado a concepção universalizante de sociedade e de ciência, as quais informam as políticas e o orçamento em educação, ciência, tecnologia.
O desenvolvimento científico por si só é insuficiente para superarmos preconceitos e desigualdades sociais. Sem dúvida, ele tem um papel importante nesse processo, mas é preciso que haja uma mudança mais radical em toda a sociedade. São os sujeitos que vivem os preconceitos e desigualdades sociais que desmascaram os processos violentos de exclusão econômica, política, de gênero e racial na sociedade e nas Ciências. Nos últimos anos, esses sujeitos têm entrado por direito no campo científico, transformando-o por dentro, impulsionando-o a superar os seus preconceitos e desigualdades.
Vivemos um momento de democracia em risco e de ataques às Ciências e aos movimentos sociais. Os tempos atuais exigem de nós um repensar das nossas estratégias. Defender a democracia é defender uma Ciência cidadã.
APUBHUFMG+ – Quando abordamos o trabalho desenvolvido no meio acadêmico, lembramos do papel que é cumprido pelas servidoras e servidores que atuam nesse espaço, sejam docentes ou técnico-administrativos. Todavia essa categoria tem sido o alvo preferencial de ataques do atual governo federal, dentro da política de desmonte do Estado. Qual a sua opinião sobre essa política de desmonte e perseguição ao funcionalismo público?
Nilma Lino Gomes – A política de desmonte do Estado é um projeto de poder. Uma articulação entre grupos econômicos, empresariais, midiáticos, religiosos, políticos, militares. Essa política de desmonte tem que ser vencida pela nossa luta pela retomada da democracia. É preciso superar essa situação de desmonte exercendo de forma responsável e digna o nosso direito de voto nas eleições de 2022. Só com a mudança do executivo federal, estadual e do Congresso Nacional que pactuam com o desmonte e com a necropolítica é que conseguiremos retomar o Estado democrático e de direito e imprimiremos um outro rumo político e econômico ao país, que não se paute no mercado e no desmonte do Estado, mas pela garantia de direitos e pela consolidação da democracia.
Como parte de uma articulação perversa, os setores que realizam e apoiam o desmonte comunicam-se, apoiam-se e tomam de assalto os direitos arduamente conquistados, pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores, em nossa história política, social e econômica.
Dentro da política de desmonte em que vivemos há uma especificidade: a capacidade de ideologicamente manipular valores, costumes, criando fake news não só nas redes sociais, mas nos discursos e nas narrativas públicas. Essa estratégia também se pauta em forjar generalizações e tem a capacidade de inventar “inimigos do povo”, disseminando a ideia de corrupção e associando-a a determinados segmentos e pessoas públicas. Há uma generalização ideologicamente pensada, nesse processo, que leva as pessoas a pensarem que toda a categoria do funcionalismo público recebe altos vencimentos e regalias.
A perseguição em curso é seletiva. Ela se destina a um setor específico do funcionalismo público, aquele que mais se articula politicamente, luta por direitos e expõe os desmandos do atual governo federal e seus asseclas. Isso mostra que a luta política dessa parcela do funcionalismo público tem surtido efeito e sua resistência têm impactado os poderosos. Essa luta e resistência têm que continuar. São urgentes para a retomada da democracia.