Corte de bolsas e diretrizes para a ciência e tecnologia irão comprometer definitivamente a ciência brasileira
Dois anúncios feitos enquanto a comunidade científica e de saúde travam a sua árdua batalha contra o COVID-19 apontam para o desmonte radical da produção de conhecimento e desenvolvimento tecnológico.
O primeiro, de efeito imediato, é a portaria 34 de 9 de março de 2020, que estabelece a redistribuição de bolsas financiadas pela Coordenadoria de Pessoal de Ensino Superior (Capes).
De acordo com a Reitora Dra. Sandra Goulart, com a medida, trinta e quatro programas, com as notas mais altas (considerados de excelência, notas 6 e 7), perderam 67 bolsas de mestrado e 172 bolsas de doutorado, o que representa uma diminuição de 9,9% no número total de bolsas de mestrado e de 16% no número total de bolsas de doutorado nesses programas da UFMG. O impacto é ainda mais drástico para os quarenta e cinco programas com notas de 3 a 5, muitas vezes programas ascendentes e recentemente estabelecidos, que perderam 18,4% das bolsas de mestrado e 20% de doutorado.
Os cortes são explicados pelos novos parâmetros, que ignoram completamente a produção de conhecimento e a relevância social dos programas. O novo modelo foi estabelecido em 20 de fevereiro de 2020 com duas portarias, a 19 e a 20. Ele destina as bolsas de acordo com produto de um “número base” de bolsas, de acordo com a nota do curso e sua área, um fator derivado do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município e o número de titulados entre 2015 e 2018.
O uso do IDH pode parecer em um primeiro momento como positivo, já que contribuiria para a solução de desigualdades regionais. No entanto, o IDH municipal não reflete as distorções regionais pois as universidades muitas vezes estão em capitais ou em cidades com IDH mais alto (inclusive porque muitas vezes a simples presença de uma universidade pública em uma cidade pequena melhora seu IDH).
O número de titulações é ainda mais grave pois torna vulneráveis à perda de bolsas os programas mais dependentes da própria CAPES. O número de titulados tem como um dos seus principais determinantes o número de bolsas. Exceto pelo Estado de São Paulo, onde a FAPESP tem assegurado um funcionamento minimamente normal à pesquisa acadêmica, os demais estados com os cortes e abandono do CNPq, e das Fundações de Amparo Estaduais como a FAPEMIG dependem das bolsas da CAPES e dos poucos estudantes que conseguem à fazer a pós-graduação sem bolsa para incrementar este fator. Vale reforçar que este critério não diz respeito à qualidade dos programas, da produção de conhecimento ou sua relevância.
Simulações realizadas pelo Dr. José A. F. Diniz Filho (UFG) [aqui] mostram que esse modelo, na formulação inicial já levaria a perda líquida de bolsas. A novidade com a portaria 34 é que ela eleva a perda de bolsas a até 35% do total, o que torna imediato o efeito deletério que o novo modelo teria para os próximos anos.
Se não bastasse o corte radical de bolsas, o MCTIC, na sua portaria No 1.122, de 19 de Março de 2020 define as prioridades no que se refere a projetos de pesquisa desenvolvimento de tecnologias e inovação. O documento em si é um desfile de palavras da moda no que se refere à tecnologia, como “Internet das coisas” ou “Cidades Inteligentes”. Essas expressões, que em si expressam caminhos interessantes para o desenvolvimento e são objeto de esforços de tecnólogos e pesquisadores, não são articuladas com a comunidade científica em seus esforços ou mesmo com o setor produtivo.
O que está muito bem articulado no documento é o que não é mencionado. A pesquisa básica em suas diversas áreas não é lembrada, apesar de que a perda do que é o verdadeiro fundamento sobre o qual se alicerça o desenvolvimento tecnológico, que é a formação de novos pesquisadores nas diferentes áreas e o treinamento em áreas de fronteira que só a pesquisa básica pode proporcionar.
O conjunto da obra é o desmonte da ciência brasileira, que vai produzir a redução da capacidade de resposta a eventos como a atual pandemia e mudanças climáticas. A suposta ênfase nos aspectos aplicados da inovação de produtos e processos (ênfase que não está acompanhada por uma política industrial, de fomento das estatais estratégicas, recursos do BNDES ou incentivos) é apenas um mecanismo para individualizar a responsabilidade do financiamento dos laboratórios e grupos de pesquisa na figura do pesquisador. Olhando ao redor sabemos aonde isso leva: a palavra empreendedorismo, sem capital, significa precarização.
O APUBH opõe-se aos critérios de distribuição de bolsas expresso nas portarias 19, 20 e 34 da CAPES. Consideramos que a manutenção e expansão das conquistas em ciência básica, incluindo aí as humanidades, são condições necessárias para o progresso social. Ela passa pelo acesso a bolsas com valores dignos aos estudantes. As prioridades para a C&T devem ser definidas democraticamente com debates prévios com a comunidade científica. Para isso, exigimos a recomposição do financiamento das agências de fomento à pesquisa, incluindo a FAPEMIG, e que as suas prioridades, expressas em seus editais, sejam decididos de maneira transparente com representantes das diferentes áreas de pesquisa e da população.