Acontece no APUBH

Mulheres no centro das manifestações

por Sarah Campos e Bárbara Duarte

advogadas, assessoria jurídica do APUBH

 

O dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, é marcado pela realização de manifestações em todo o mundo. Apontam-se as desigualdades de gênero, a discriminação no trabalho, a dupla-jornada, a insuficiente participação das mulheres na política, os números da violência contra a mulher, a “desumanização feminina”, os impactos das políticas públicas sobre a questão de gênero e o papel desempenhado pelas mulheres ao longo da história nas reivindicações por melhores condições de vida digna.

Simone de Beauvoir afirmou que em momentos de crises os direitos das mulheres são sempre questionados, de modo que é necessário “manter-se vigilante durante toda a sua vida”[1]. E já nas primeiras manifestações de mulheres por direitos que se destacaram no século XX percebia-se a conscientização quanto a esse fato.

O surgimento do Dia Internacional da Mulher é atribuído a dois principais momentos: há quem diga que sua origem está atrelada a uma grande passeata de mulheres em Nova York em 1909; para outras(os), o marco inicial é a luta das mulheres na Rússia, encabeçadas por Clara Zetkin, pela inclusão das questões de gênero na pauta do movimento revolucionário[2].

Independentemente de a qual momento histórico seja atribuído o pontapé inicial para a consolidação de um movimento internacional, fato é que o início do século XX foi marcado por uma efervescência política que colaborou em muito para que se começasse a lutar pelo reconhecimento de direitos individuais e sociais das mulheres: a industrialização e a urbanização foram marcadas pela entrada maciça de mulheres no mercado de trabalho, ou seja, para além do contexto privado, elas passaram a se inserir no âmbito público; o reconhecimento de direitos individuais e sociais para todas e todos não mais condizia com a manutenção de um poder do homem sobre o corpo e a vida da mulher; os efeitos da miséria eram sentidos primeiramente por elas, responsáveis diretas pela manutenção do lar e das(os) filhas(os); o retorno ao cuidado do lar no Pós-Guerras foi problematizado; as lutas contra as opressões de gênero também ocorria nos países não integrantes dos grandes centros do capitalismo.

As mulheres foram às ruas lutar pelos seus direitos, tanto aqueles atribuíveis a todo e qualquer ser humano quanto aos que se referem ao necessário fim das opressões a que estavam sujeitas pelo simples fato de serem mulheres.

É evidente a relação de todo esse histórico com o momento atual, no Brasil e no mundo. A atual crise político-econômico-jurídica, como disse Beauvoir, coloca em xeque as conquistas das mulheres, tanto as já consolidadas quanto aquelas em vias de concretização.

Atemo-nos ao Brasil, principalmente em termos jurídico-políticos.

Sem aprofundar nas reformas legislativas e/ou ministeriais que impactaram os direitos das mulheres até o fim de 2018[3], o que se verifica, já no início de 2019, em apenas dois meses de gestão do novo governo eleito, é um projeto insensível às principais pautas femininas.

1)      Liberação do porte de armas e a violência de gênero.

Os números da violência doméstica contra a mulher no Brasil são alarmantes. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, o número de feminicídios no país foi de 929 em 2016 a 1.133 em 2017. Minas Gerais foi o Estado da federação que registrou as maiores taxas, com 134 casos em 2016 e 145 em 2017[4].

 

 Dados extraídos do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018[5].

Neste cenário, sabe-se que grande parte dos crimes motivados por questões de gênero são praticados no lar, pelo companheiro da mulher. É preocupante que nesse contexto sejam flexibilizadas as regras para a posse de arma de fogo, ou seja, a possibilidade de manter arma no ambiente doméstico. Foi o que possibilitou o Executivo Federal, por meio do Decreto Federal nº 9.685 de 2019.

Além de alterar o Decreto Federal nº 5.123 de 2004 estabelecendo a presunção da “veracidade dos fatos e das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade” da arma de fogo, o novo Decreto estabelece ser possível adquirir arma de fogo por parte daqueles(as) que residem em áreas urbanas com elevado índice de violência e residentes em área rural[6], o que, evidentemente, corresponde a uma grande ampliação do rol de critérios para a aquisição.

Se não pensada, mas no mínimo negligenciada, a política de alargamento das hipóteses de aquisição de arma de fogo pode contribuir para a elevação dos já alarmantes números de violência contra as mulheres e feminicídio nos lares brasileiros.

2)      A Reforma da Previdência atinge de forma avassaladora as mulheres trabalhadoras, urbanas e rurais.

Igualmente preocupante para as mulheres é a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 6 de 2019 apresentada em 20 de fevereiro de 2019. Entidades que se debruçam sobre o estudo de gênero já apontam o nefasto impacto que a referida PEC, se aprovada nos moldes atuais, terá para as mulheres, principalmente as negras, pobres e moradoras de zonas rurais[7]. Com a PEC, a idade para a aposentadoria (pública e privada) aumenta para 62 anos (mulheres) e 65 anos (homens) e o tempo de contribuição mínimo para acessar o sistema previdenciário iguala ao dos homens correspondendo a 25 anos (ambos os gêneros) chegando a 40 anos de contribuição para recebimento de 100% do benefício. Para professores do ensino básico, composto, em sua grande maioria, por mulheres, o requisito sobe para 60 anos de idade e o mínimo de 30 anos de contribuição.

Além do aumento da idade, a perversidade maior está no elevado tempo mínimo de contribuição exigido para começar a fazer jus ao benefício de aposentadoria. Em um contexto de trabalho precarizado e de dupla-jornada, mulheres têm mais dificuldade de manter vínculos de emprego formal e com salários mais altos, o que reproduz a desigualdade de gênero também no sistema previdenciário que esta PEC só vem a agravar.

 

3)      “Escola Sem Partido” e a discussão sobre desigualdades de gênero em sala de aula.

No mesmo sentido, estão em risco as importantes vitórias conquistadas pelos movimentos femininos em termos de educação: nas últimas décadas, borbulharam discussões sobre violências e opressões de gênero nas escolas e universidades, com a consolidação de debates e coletivos voltados a esta luta. A reação a isso veio na forma de propostas legislativas nacionalmente conhecidas pelo projeto “Escola Sem Partido”, que, desde 2014, são apresentados ao Congresso Nacional para, dentre outras medidas, impedir que sejam discutidos assuntos referentes a gênero no ambiente escolar[8].

Se o movimento que se desenhou nos últimos tempos no país e no mundo foi no sentido de desmistificar a noção de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, impossibilitar que essas questões sejam levadas às escolas, representa um retrocesso em termos de formação de cidadãos críticos e, consequentemente, pouco sensíveis à necessidade de estabelecimento de medidas institucionais para minimizar e extinguir desigualdades infundadas, pautadas unicamente nas diferenças de gênero.

 

4)      O desarquivamento da PEC da vida (nº 29/2015).

Por fim, se o aborto é uma importante pauta para o seguimento feminista, outra medida também se avizinha para retroceder na liberdade de escolha e de dispor do próprio corpo: o Senado desarquivou, no último dia 12 de fevereiro, a PEC nº 29/2015, a “PEC da vida”. A proposta é de que seja alterado o artigo 5º da Constituição, incluindo-se a previsão de “inviolabilidade do direito à vida desde a concepção[9]. Para os parlamentares contrários ao desarquivamento da PEC, a mudança poderia revogar as três exceções existentes na legislação brasileira que admitem o aborto em casos excepcionais: estupro, risco de vida à mãe e anencefalia do feto[10].

Com tantas medidas institucionais que representam verdadeiros retrocessos à igualdade, inclusão, emancipação, autonomia e liberdade das mulheres, este 8 de março de 2019 carregará uma significância que ultrapassa a histórica e reticente pauta de resistência à cultura de desigualdade de gênero incrustada no modus operandi da sociedade patriarcal.

Já nos preparativos para a data, as mulheres de todo o país demonstraram que estão prontas para, além de resistir aos tradicionais desafios culturais e econômicos, enfrentar o levante conservador institucionalizado, reafirmando os seus direitos individuais e sociais consolidados na Constituição da República e nos instrumentos internacionais.



[1] Disponível em: <http://www.cch.ufv.br/revista/apresenta.php?id=30>. Acesso em: 6 março 2019.

[2] Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-43324887>. Acesso em: 06 março 2019.

[3] Em estudos específicos são abordados o viés de gênero da Reforma Trabalhista, a extinção do Ministério que cuidava das políticas públicas para mulheres, o impacto da terceirização irrestrita sobre as mulheres, etc.

[4] Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 218. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. p. 56.

[5] Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 218. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. p. 06.

[6] BRASIL. DECRETO Nº 5.123, DE 1º DE JULHO DE 2004. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5123.htm >.  Acesso em: 06 março 2019.

[7] Números sobre a situação previdenciária da mulher, no presente e no futuro (com a PEC) estão disponíveis em <http://www.cfemea.org.br/index.php/alerta-feminista/4618-reforma-da-previdencia-aprofunda-desigualdades-entre-homens-e-mulheres>. Acesso em: 6 março de 2019.

[8] Análise dos projetos de lei disponível em: <https://apubh.org.br/acontece/acoes-juridicas/projeto-escola-sem-partido-nao-e-votado-e-sera-arquivado-nesta-legislatura/>. Acesso em 6 março 2019.

[9] Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/02/12/senado-desarquiva-pec-que-estabelece-inviolabilidade-do-direito-a-vida-desde-a-concepcao>. Acesso em: 06 março 2019.          

[10] Idem.